17.10.21

Zero vírgula vinte e cinco

 


«Todos os anos, ano após ano, chegamos a esta altura e deparamo-nos com o mesmo. Não há ansiedade, antecipação, creio que já nem nos lembramos de pensar no assunto. É apenas assim: chega a proposta de Orçamento do Estado e o investimento público na Cultura, no direito de cada um de nós, cidadãos, de termos acesso à criação e à fruição artísticas, vale quase nada.

Há pouco mais de três anos, em Março de 2018, ainda o vírus estava longe de nos assombrar, foram publicados os resultados do primeiro Concurso de Apoio Sustentado às Artes da responsabilidade da “geringonça”. A herança do período anterior e uma condução política marcada, pelo menos, pela falta de convicção na centralidade da acção cultural e do apoio às artes conduziram, nos primeiros resultados, a uma espécie de caricatura daquilo que seria uma política minimamente consequente.

Daí, da frustração imediata, mas também daquela consciência mais profunda de que o futuro não pode estar sempre a ser adiado, deram-se algumas manifestações públicas com clara relevância, nasceram movimentos de artistas e profissionais das artes que procuraram mais uma vez mobilizar a sua energia na reivindicação do óbvio.

As circunstâncias do momento e, espero, a compreensão da justeza das reivindicações produziram resultados concretos. Os procedimentos foram interrompidos, os montantes a concurso corrigidos em alta, num esforço ainda assim escasso de repor alguma normalidade. Foi lançado um processo, mais um, de revisão das regras de apoio público à acção cultural independente, iniciou-se o caminho que um dia há-de levar a um estatuto da profissão artística, lançaram-se os fundamentos da Rede Nacional de Teatros que agora começa a esboçar-se…

Pelo meio, deu-se este pequeno grande detalhe chamado pandemia. Essa, fiel à sua crueza existencial, pôs a nu a miséria precária dos profissionais das artes e a desresponsabilização das grandes estruturas públicas, a sua suborçamentação e o feroz incumprimento de relações laborais normais enquanto método virtuoso de gestão. Tão a nu que foi preciso mais uma vez a intervenção pública de grupos, os representativos do sector ou os espontâneos que felizmente surgiram, para mostrar ao Governo e à Segurança Social, tanto quanto conseguiram, como activar mecanismos de ajuda de emergência construídos para um mundo que não é o mundo informal e precário da generalidade da profissão artística. Mais uma vez enquanto medida extraordinária, ainda que num gesto louvável de minimização dos impactos da crise num sector imensamente frágil, foram estendidos os apoios públicos à criação e programação, tanto no tempo, adiando o novo concurso para 2022, como na sua abrangência, integrando todas as candidaturas consideradas elegíveis, assim permitindo o acesso aos apoios a criadores e companhias que nunca o tinham conhecido.

Tanto o sobressalto de 2018 como a pandemia, quando finalmente deixar de nos assombrar, deixam uma herança incontornável: a evidência de que o edifício da cultura e das artes, cuja construção nunca avançou muito, carece de pilares sólidos e atitudes corajosas. Na sua fundamentação política, na definição dos seus termos de intervenção, na assunção definitiva de que se trata de uma componente essencial do menu das políticas públicas. Mas deixam também um outro rasto. Com as suas respostas, eventualmente tácticas, às emergências que foram surgindo, o Governo abriu caminhos para uma cidadania real do mundo da cultura neste país/mundo que partilhamos. E a única maneira de irrigar esses caminhos é o incremento progressivo do orçamento para a Cultura.

É claro que podemos sempre fingir que não vemos e voltar a aceitar que se dedique à Cultura o montante extraordinário de zero vírgula vinte e cinco por cento de um Orçamento do Estado. Zero, talvez vírgula, e depois um número qualquer, zero em suma. Ou esperarmos que, desta vez, os partidos à esquerda da “geringonça” incluam a cultura nas suas linhas vermelhas. Ou que o primeiro-ministro compreenda que o ministro das Finanças lhe está a boicotar o esforço. Ou, então, passamos à acção. Até porque, parafraseando Salgueiro Maia, o herói que deu, em Abril, um significado sublime ao número vinte e cinco, há o estado de emergência, há o estado de calamidade e há o estado a que isto chegou…»

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1 comments:

Monteiro disse...

Um capitalista progressista como é António Costa, relegar assim tanto a Cultura leva a suspeitar que não é tão progressista assim como muitos o julgam.