15.12.21

Cimeira pela Democracia: por um lado e por outro

 


«A cimeira nasce da preocupação americana com o estado da sua democracia, mas ficou ensombrada pela tentação de voltar a uma política de blocos que enfraquece o multilateralismo.

O Presidente Biden afirmou, na abertura da cimeira, que as democracias liberais, essa combinação única de direito de voto com Estado de direito, estão em recessão. O cenário autocrático reforçou-se com a emergência da China, onde a esperança de reformas políticas se desvaneceu, como primeira potência económica.

O iliberalismo político, defendido por Orbán ou Putin, a redução da democracia à realização de eleições, cada vez menos livres, é impulsionado por uma vaga de nacionalismo populista que chegou ao poder no Brasil ou na Índia, e ameaça a França e a Itália.

Quando Biden, em plena campanha eleitoral, anunciou no Council on Foreign Relations que iria convocar esta cimeira caso fosse eleito, os Estados Unidos eram o epicentro da vaga nacional populista. A ameaça existencial à democracia americana é hoje muito mais do que Trump. Em diversos estados, o Partido Republicano tem vindo a aprovar legislação para dificultar o voto das minorias afro-americanas e alterar a certificação dos resultados eleitorais de forma a garantir a vitória em 2024, mesmo que percam.

Esta cimeira procura enfraquecer o movimento antidemocrático americano, assimilando-o à vaga autocrática mundial e recordando a interferência de Putin nas eleições americanas.

A Cimeira não sublinhou as causas profundas da vaga populista: a desigualdade e a corrupção da política. Biden sublinhou o desafio da corrupção, que é um problema grave em vários países, mas não a necessidade de pôr termo ao financiamento das campanhas eleitorais pelas grandes fortunas, o que vicia os resultados eleitorais e perpetua as desigualdades.

Apesar de partilharem a preocupação de Biden com o nacional populismo, os dirigentes europeus não mostraram particular entusiasmo com esta cimeira. Por um lado, consideraram que não é alinhando em mais uma iniciativa americana de promoção da democracia que irão enfraquecer o populismo nos seus países – o historial americano das últimas décadas “de promoção da democracia”, como a guerra do Iraque, é difícil de esquecer. Os dirigentes europeus participaram na cimeira para apoiar Biden, embora saibam que é nos seus países e na União Europeia que têm de agir se quiserem conter a extrema-direita.

A agenda democrática da cimeira é ensombrada pela estratégia americana de criar um bloco anti-chinês, retomando uma parte da retórica da guerra fria, do mundo livre contra o mundo da tirania. Esta segunda agenda fere gravemente a credibilidade da cimeira, pois justifica o convite a países não democráticos – como as Filipinas, Angola, o Paquistão, a República Democrática do Congo ou o Iraque – e a ausência de outros, como a Bolívia, país onde acabam de se realizar eleições livres. Também a Tunísia ficou de fora, mesmo que Estados Unidos e União Europeia tardem a declarar o seu repúdio inequívoco ao golpe de Saied, o que seria bem mais eficaz.

A política de blocos reforça a aliança entre a China e a Rússia. Para os europeus, porém, a Rússia de Putin é uma ameaça às suas democracias muito mais eminente do que a China.

A violação grave dos direitos humanos na China, tal como em outros países, alguns presentes na cimeira, deve ser uma prioridade de política externa, mas o palco adequado para abordar esta questão são as instituições multilaterais. É neste quadro que se pode estabelecer a relação entre a defesa dos direitos humanos e o combate à emergência ecológica ou à pandemia. A comissão de inquérito da OMS às origens do Covid é um exemplo do que deve ser feito, como é a ação da Alta-Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, cujo papel deveria ser muito mais respeitado e apoiado, da mesma forma que a OMC é o quadro ideal para tratar de questões como o trabalho forçado.

As conclusões da cimeira são necessariamente vagas: não só a lista de participantes a tal obriga, como nenhum país pode obrigar outro a levar a cabo reformas internas. Dois dos participantes na cimeira, Bolsonaro e Modi, são o exemplo mesmo da ameaça existencial que enfrentam as democracias. É por isso revoltante ouvir Bolsonaro usar a tribuna da cimeira para defender o direito de continuar a desinformar, a que chamou a liberdade da internet, sem que ninguém o contrarie.

O que restará da cimeira é a afirmação clara e inequívoca de que as democracias estão em risco, a par com o reconhecimento do papel da sociedade civil e das suas organizações transnacionais, o anúncio de medidas de apoio à liberdade de imprensa, aos direitos humanos e ao combate à corrupção. Nada de particularmente inovador, e em muitos casos reciclagem de medidas já existentes.

Dentro de um ano os dirigentes voltarão a encontrar-se para verificar o cumprimento das vagas promessas que fizeram. Biden afirmou que tudo fará para que seja aprovada a lei que garante o direito de voto livre de todos os americanos, o que depende, antes de tudo, da determinação em contestar as táticas de “filibuster” no Senado norte-americano. Tem um ano para o fazer. Se fracassar, não é esta cimeira que está em causa, mas algo de muito mais essencial para o futuro da democracia no mundo: a própria democracia americana.»

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1 comments:

Niet disse...

A sobrevivência da Democracia USA está na ordem politica mundial imperativa do momento. Só a belissima cronista Clara Ferreira Alves tem alertado em Portugal para o terrivel dramatismo da questäo em intervencöes brilhantes no Eixo do Mal.Numa gazeta estudantil da Uni de Harvard surgiu uma topografia da verdadeira contra-revolucäo que Trump e os seus acólitos promovem dia-a-dia através do xadrez mainstream da violacäo dos" checs and balances " em que assenta o jogo partidário supremo norte-americano. Robert Kagan, um neo-con convertido ao obama-clinton-centrismo, há meses que nas colunas do Washington Post deu um grito de alarme contra a sedicäo permanente manipulada contra o sistema democrático pelo movimento de Trump. Esta semana os dois matutinos novayorkinos deram espaco aos ecos da audicäo de gravacöes no Comité de Investigacäo do Senado, prestados sobre o desenrolar do ataque ao Capitólio telecomandados com a interferência e cumplicidade do infeliz cabo-de-ordens de Donald Trump na Casa Branca,Mark Meadows, de arrepiar os cabelos pela indesmentivel implicacäo do ex-PR na tentativa de boicotar a confirmacäo da vitoria presidencial de Biden nas presidenciais.O grande constitucionalista jubilado de Harvard, Laurence Tribe, comentou o facto dizendo que o ex-PR pode incorrer numa pena de prisäo superior a 5 anos e perda dos direitos politicos de representacäo, o
que pode invalidar uma ventilada recandidatura em 2024 do gestor de golfs de Palm Beach. Niet