«Gabriel Boric, 35 anos, candidato do partido Convergência Social, progressista, foi eleito no passado domingo novo presidente da República do Chile, derrotando na segunda volta o candidato do Partido Republicano, extrema-direita, José Antonio Kast, até hoje defensor da sangrenta ditadura de Augusto Pinochet, que durou no referido país de 1973 a 1988. Quando escrevia esta coluna e estavam contadas 80% das urnas, a diferença entre os dois contendores era de dez pontos percentuais, pelo que Kast não teve outra opção senão reconhecer a derrota e felicitar o adversário. Pelo menos, foi mais "civilizado" do que Trump.
A vitória de Boric já está a ser considerada histórica, justamente e por vários motivos. O primeiro é a idade, uma vez que o novo presidente chileno é o mais jovem chefe de Estado a ser eleito no país. O segundo é o número de votos do vencedor, só comparável ao de Eduardo Frei, em 1964. De notar que, apesar de o voto ser facultativo, o número de eleitores foi igualmente recorde, pois, pela primeira vez na história do Chile, o pleito presidencial contou com oito milhões de votantes. Uma nota adicional: entre a primeira e a segunda volta, cerca de um milhão de pessoas decidiram votar, o que mostra bem a consciência dos chilenos relativamente ao que estava em jogo, ou seja, o risco do retorno da extrema-direita ao poder.
Os chilenos que, não tendo ido às urnas na primeira volta, decidiram fazê-lo na segunda ajudaram, certamente, a "desmentir" as sondagens que davam um "empate técnico" entre Boric e Kast. Os supostos "equívocos" das sondagens parecem estar a tornar-se corriqueiros em todo o mundo, em várias eleições, mas, como eu entendo um pouco de pesquisas, estou inclinado a pensar que o principal erro tem sido a maneira como as mesmas têm sido interpretadas. Como se sabe, o segredo das pesquisas não está nos números em si, mas na sua "leitura".
Gabriel Boric é um representante da "nova esquerda" chilena, que ascendeu no país durante os protestos estudantis dos anos 2010, que liderou. No final da referida década, marcada por fortes movimentações populares, já tinha ganho proeminência nacional suficiente para se candidatar à presidência da República. Mas, para a vitória de domingo, foi fundamental o entendimento que conseguiu estabelecer com a esquerda tradicional, representada pela Frente Ampla, aliança composta pelos socialistas herdeiros de Allende e pelo Partido Comunista.
Os desafios do novo presidente chileno são enormes, a começar pela reversão dos efeitos sociais das políticas neoliberais do governo do seu antecessor, reeditando, como se sabe, certas medidas que já haviam sido ferozmente implementadas durante a ditadura de Pinochet. É atribuída a Boric a seguinte frase: "Se o Chile foi o berço do neoliberalismo na América Latina, também será a sua tumba." Aguardemos.
Caberá também a Gabriel Boric convocar o referendo relativo à nova Constituição do país, que ainda está a ser escrita. Curiosamente, uma das ideias que estão em cima da mesma é adoção do parlamentarismo, o que, a suceder, obrigará o presidente que acaba de ser eleito a realizar novas eleições.
A eleição de Boric junta-se à chegada ao poder de outros políticos de esquerda (mais tradicional ou mais renovada) em vários países da América Latina, nos últimos quatro anos. São eles: López Labrador, México (2018); Alberto Fernández, Argentina (2019); Luis Arce, Bolívia (2019), e Pedro Castillo, Peru (2021). Aparentemente, a simpatia pelo chamado socialismo do século XXI não se apagou na região. O pesquisador brasileiro Mathias de Alecanstro chama aos movimentos de esquerda que têm chegado ao poder graças a alianças "republicanas" com organizações de centro a "esquerda de coalizão" [coligação], diferente da "esquerda de rutura".
O próximo caso será, precisamente, o Brasil?»
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