4.12.21

Tarde partiu Cabrita, sublinhado a desumanidade

 


«Tive, no início de toda esta lamentável história de Eduardo Cabrita, o cuidado de me resguardar de comentários excessivos. De não participar nos tribunais plenários que hoje funcionam em permanência na comunicação social e nas redes sociais. E, ainda menos, no exército de moralistas tão deslocado para um país onde são muito poucos os que cumprem os limites de velocidade (incluo-me nos prevaricadores e já fui multado por isso). Por uma simples razão: pouco sabia e o caso, envolvendo uma morte e uma possível acusação de homicídio involuntário, não permite a mais pequena leviandade.

A acusação parece confirmar a ausência de responsabilidades criminais do demissionário ministro da Administração Interna. Ao dizer que era apenas um passageiro o ministro expôs um facto indesmentível, moral e criminalmente relevante. Se essa era a forma e o momento para o dizer, é outra questão. Antes e depois desta acusação, várias coisas podiam ter sido ditas pelo ministro sem beliscar a investigação. E não foi seguramente para preservar a investigação que se manteve no lugar. A prova de que a sua demissão não perturbava a investigação, por nada ter a ver com ela, é ela acontecer depois de se conformar que ele não tem responsabilidades criminais. Exatamente porque não era por responsabilidades criminais que se poderia ter de demitir. Era pelas mesmas razões políticas que o levam a demitir-se quando António Costa passou a ter uma campanha eleitoral pela frente. Razões políticas.

Eduardo Cabrita não se demite porque teve o azar de ir no banco de trás de um carro que colheu mortalmente um trabalhador. Isso até poderia levar uma demissão porque, independentemente das responsabilidades diretas, o fragilizava para o exercício do cargo. As demissões não correspondem sempre à assunção da culpa, podem corresponder à consciência de que fragilidade política de um ministro tornou o exercício do cargo impossível: é difícil um ministro da Administração Interna impor o respeito pelas regras da estrada quando esteve envolvido na morte de alguém por incumprimento dessas regras por parte do seu motorista. Mas também não é por isso que Cabrita não tinha qualquer futuro. É pela sua desumanidade.

Nada impedia que, durantes estes meses, Eduardo Cabrita tivesse dirigido palavras públicas à memória da vítima e à sua família, fosse qual fosse a sua responsabilidade no acidente. Nada impedia que fizesse o que qualquer ser humano normal, ainda mais um político, faria no seu lugar: contactar diretamente a família logo depois do acidente, disponibilizando-se pessoalmente para todo o apoio. E tudo lhe dizia para não ter dado aos seus serviços indicações para publicar imediatamente uma nota em que tentava responsabilizar a pessoa que tinha acabado de morrer. Aí não se preocupou em preservar a investigação que seguramente viria.

Da mesma forma, seria de esperar que, no momento da demissão, tivesse uma palavra para a família do falecido. E uma palavra para o seu motorista, homem que o acompanhou durante estes anos e está agora acusado de homicídio involuntário. Tudo isto grita aos nossos ouvidos uma assombrosa falta de empatia. A mesma falta que o levou a manter-se um silêncio de oito meses depois da morte de Ihor Homenyuk. E a esperar nove meses para escrever à viúva.

O político não se limita a tratar da gestão técnica mais ou menos competente dos dossiers que tem em mãos. Trata da gestão emocional da relação com os governados, porque dela depende a sua autoridade política e, em última análise, o cumprimento das suas funções. Se assim não fosse, bastavam-nos burocratas e tecnocratas. Se não ficarmos apenas pela decência humana, a ausência de empatia é uma questão política.

Usar este momento de despedida, em que todas as palavras deviam ser para os desgraçados desta história – a vítima mortal, a sua família e o motorista que pode acabar condenado –, para fazer um autoelogio político é grotesco e volta a confirmar a incapacidade de perder cinco minutos com o sofrimento dos outros. Nem naquele momento se recordou deles. Esse elogio, a ser feito, caberia ao primeiro-ministro e a terceiros.

Esta demissão, em vésperas da campanha eleitoral, não resolve a desumanidade, sublinha-a. Ela não resulta de qualquer leitura política do que se passou, porque o resultado da investigação não nos traz nada de novo que aumente a responsabilidade do ministro. Ela nem sequer resolve qualquer problema político da falta de autoridade de um ministro que só tinha mais dois meses de mandato. Ela resulta de um mero cálculo eleitoral. O que anula uma acusação que até podia ser junta: a do aproveitamento político da oposição desta tragédia. Porque a demissão não tem outra função que não seja a de diminuir o impacto eleitoral deste episódio. Ela corresponde à lógica de tudo aquilo a que podemos chamar de aproveitamento político. Não no que ele tem de natural – o escrutínio dos servidores públicos ou a consciência de que a sua autoridade não depende apenas de pressupostos formais –, mas no que ela tem de mais mesquinho – o mero cálculo eleitoral.

A culpa de tudo isto é, em última análise, do primeiro-ministro. A ele se deveu a manutenção de um cadáver político depois de oito meses de silêncio no caso do SEF. Deixar alguém neste estado político com uma pasta desta sensibilidade não foi apenas um insulto ao Estado e às suas instituições. Foi uma desumanidade para o seu amigo, que ele sabia que estaria, a partir daquele momento, irremediavelmente fragilizado e seria um alvo fácil de todos os ataques. Não ter feito a remodelação antes das autárquicas – apenas porque queria guardar a substituição de João Leão para depois do orçamento – correspondeu à habitual autoconfiança que tantas vezes trama António Costa. Esta demissão, feita neste momento, acaba por ser a cereja em cima do bolso. Não é por vir tão tarde. É por parecer tão conveniente. Tanto que não o será.»

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5 comments:

Conceição Paulino disse...

Eu nem falaria em empatia, 1 bem cada vez + raro, mas responsabilidade. Para tal não precisa de empatia nem de moral, só é precisa a inteligência humana. Nao a abstracta.

BELIAL disse...

Que trambolho begueiro se gabe, é cousa do fajardo que se sabe. Que parceira, engraxadora lareira, ensebe o podricalho - brada aos céus,

António Ladrilhador disse...

Falta abordar a questão da brandura da acusação deduzida contra o motorista - e, talvez, por arrasto ao ilustre Passageiro.
A conclusão por existência de negligência, de mera culpa, parece inaceitável tratando-se de uma viatura que terrá irrompido, a mais de 160 km/h, por uma zona de obras onde, mais do que provavelmente, estariam pessoas a trabalhar, o que faz toda a diferença.
A opção por homicídio por negligência parece, assim, absolutamente desadequada, devendo ser substituída pela de homicídio simples com dolo eventual.
Deixei umas palavras sobre o tema no Mosaicos em Português, que convido a visitar.
Bom fim de semana.

CHE disse...

A demissão deste empecilho não passou de uma jogada dentro do calendário eleitoral.

Deragnu disse...

Um médico diz ao doente para não fumar, mas ele fuma.
Uma nutricionista prescreve uma dieta à doente que é obesa, mas ela é tbm gorda.
Um ministro vai num banco detrás a dormir, mas é culpado por um gajo de calças não mão atravessar uma autoestrada...!
Tu é bêbado, e dizes a toda a gente para deixarem de beber..., queres ser o único...?!
És um profissional zeloso, numa instituição ou empresa onde anda tudo à deriva..., tudo fazes para por ordem naquela desordem..., és o culpado...?!
As melhoras, disse ela, com tom tal, de que espera que desapareças...!