31.3.22

Vamos então falar da NATO

 


«Em alguns dos países europeus que continuam fora da NATO instalou-se um debate sobre a adesão. Nos que estão dentro, sobre o seu reforço. Não é preciso ser um génio da análise política para perceber o que se passa: forças que muito antes da invasão da Geórgia, em 2008, e dos sinais de expansionismo russo já defendiam o alargamento e reforço da NATO, numa lógica de reconstrução da guerra fria, sentem que a emoção e medo coletivos com a invasão da Ucrânia facilitam os seus argumentos.

Também não é difícil perceber que tomar estas decisões neste momento nem demoverá Putin – não tem qualquer consequência imediata –, nem facilitará qualquer solução negociada. Não critico quem escolhe os melhores momentos para fazer vencer o seu ponto de vista. Faz parte do combate político. Mas eu escolho o momento em que saberemos como a Europa sairá deste conflito. Não fazemos a mínima ideia.

A esquerda que tem no combate à militarização da política e à lógica dos impérios um ponto central da sua identidade não pode ser indiferente à mudança que se deu com esta guerra. Uma guerra de conquista territorial na Europa – e que no mundo só tem paralelo recente com o que Israel faz, em circunstâncias e escalas diferente – obriga a mudar as suas propostas. Não se podem ficar por vagas estruturas de negociação de paz que serão obviamente ignoradas. A Europa precisa de instrumentos de defesa perante uma ameaça real. Se não o fizer, a resposta será a corrida descoordenada de todos os países às armas ou o reforço de uma lógica de blocos mundiais, com regresso à guerra fria. Se a esquerda se demite, a direita ficará sozinha a dar respostas aos novos riscos para a nossa segurança.

Nada tenho contra alianças de defesa conjunta. A Europa perdeu uma oportunidade histórica, nos anos 90, para integrar a Rússia num espaço comum de defesa. Para não transformar a queda do comunismo numa derrota, ainda por cima mal resolvida, de um gigante nuclear. Para lhe dar um lugar relevante na mesa do poder global. Tratou-a como uma derrotada e, por isso, a opção foi a oposta à necessária: alargar a NATO e continuar a tratar a Rússia como uma inimiga. Até ela se transformar mesmo numa inimiga.

Não foi isto que levou à invasão da Ucrânia (isso foi apenas um pretexto, como já se percebeu), mas foi também isto e o falhanço da transição russa para a democracia que contribuiu para levar a Rússia até às mãos de Putin. A crítica à expansão da NATO não é de Putin, é de homens como Henry Kissinger, George Kennan (o arquiteto da estratégia de contenção da URSS) ou John Mearsheimer, indo muito mais longe do que eu seguramente iria na relação de causa e efeito entre o alargamento da NATO e a invasão da Ucrânia. E vão mais longe porque eles próprios têm um olhar imperial sobre o mundo. No caso, do lado dos EUA.

Não deixa, no entanto, de ser verdade o que esta semana foi escrito por Pacheco Pereira: mesmo que a Rússia tivesse razões para temer o cerco que lhe estava a ser feito, “a resposta completamente desproporcionada muda os termos da questão, e transforma a insegurança invocada com a expansão da NATO num pretexto, e não numa razão”. E, paradoxalmente, a invasão acaba por dar razão aos países que queriam aderir à NATO.

A NATO nasceu como aliança defensiva (não juntava nem junta apenas democracias) perante a URSS e os seus aliados e satélites. O fim do bloco comunista e do Pacto de Varsóvia poderia ter levado, seguindo a lógica da nova era, ao desmantelamento da Aliança Atlântica. Mas os EUA tinham os seus próprios interesses, que incluíam os despojos do império soviético, e não estavam para aí virados. Nem para a inclusão da Rússia pós-soviética numa aliança militar, tendo que partilhar com ela o poder depois do que viram como uma vitória sobre o inimigo. Pelo contrário, bateram-se por uma expansão perigosa para a paz na Europa. Esse apetite dirigiu-se, sobretudo desde a ocupação da Crimeia, para a Ucrânia. Também aí, Europa e EUA não têm interesses e estratégias coincidentes.

Depois de 1991, tivemos três intervenções da NATO: na ex-Jugoslávia (Bósnia e Kosovo), no Afeganistão e na Líbia. Nenhuma delas cumpriu, a não ser de uma forma bastante tortuosa, as funções de defesa territorial dos estados-membros (o ataque da Al-Qaeda foi tratado como um ataque do Afeganistão aos EUA, as restantes arrancaram mandatos à ONU). Se a NATO não intervém (e bem) na Ucrânia não é porque os seus estatutos o impeçam mais do que outras intervenções, é porque a Rússia tem armas nucleares. Duas destas intervenções aconteceram fora do continente europeu ou americano. Uma, muitíssimo distante desse espaço.

Esta é a NATO que herdámos. Não como força defensiva, mas como braço militar permanente dos interesses específicos de um dos estados que a integra. Todas as intervenções tiveram como critério fundamental os interesses geopolíticos dos EUA, não do conjunto dos membros da NATO.

Estou disponível para debater o estatuto desta ou de outra aliança militar de defesa. Insisto: de defesa. Caso venha a existir uma mudança de liderança na Rússia, ela tem de ser, de alguma forma, incluída no sistema de segurança europeu. A Europa não deve querer voltar a ser trincheira de combate entre impérios, por mais que isso excite quem sonha com perpétuos confrontos entre o bem e o mal.

Também estou disponível para debater uma aliança militar europeia, que não dependa das necessidades políticas e estratégicas dos vários inquilinos da Casa Branca – é possível que o próximo presidente dos EUA venha a ser, se não Donald Trump, um radical republicano –, com interesses muitas vezes não coincidentes com os da Europa. Mesmo na Ucrânia, estou convencido que os interesses não eram e continuam a não ser os mesmos. Estranho é defender que a Europa tem de se rearmar para ganhar autonomia em relação aos EUA e opor-se a que isso seja acompanhado por passos políticos que garantam essa autonomia.

Oponho-me a um exército europeu – o Frankenstein de Bruxelas, com uma moeda sem unidade política, já é perigoso que chegue –, mas não sou contra uma aliança militar de estados europeus formalizada. Que não tem de ficar pelos estados-membros ou inclui-los a todos. Não defendo que essa aliança deva ser um mero prolongamento da NATO. Isso significou, nos últimos trinta anos, ser um mero prolongamento dos interesses estratégicos de apenas um dos seus membros, que tem um poder desproporcionado em qualquer aliança que participe.

Tudo isto estará em discussão nos próximos anos, quando percebermos que Europa sairá da aventura criminosa de Vladimir Putin. Querer fechar o debate neste momento, quando desconhecemos o desfecho desta guerra, o que ela fará à Rússia e como esta se aproximará da China, não é tratar da segurança europeia. É assegurar que as decisões se tomam sem escrutínio, racionalidade e responsabilidade. É aproveitar a boleia de Putin.»

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