16.4.22

Alterações climáticas na ecologia política

 


«As últimas eleições legislativas mostraram alterações significativas na nossa ecologia política. É como se tivessem chegado drásticas alterações climáticas que estão a mudar o nosso “tempo”. E como acontece com as outras, as do planeta, há quem queira ver e quem faça de conta que nada mudou. Elas manifestam-se em todo o espectro político, e estão interligadas: o PS tornou-se o grande partido centrista, a direita trouxe para o Parlamento a sua radicalização, e a esquerda tornou-se quase insignificante.

Mantendo a minha posição de fundo, a de que conceitos como esquerda e direita não são heurísticos — porque da sua aplicação não resulta conhecimento, mas ilusão, ou, se se quiser, aquilo a que Marx chamava “ideologia” —, uso-os muitas vezes mais por comodidade do que por rigor. Mas aqui é impossível não os usar como descritores, porque, quando numa sociedade há um reforço político identitário que passa por esta dicotomia, ela não pode deixar de ser usada, mesmo que os termos sejam mais posicionais do que substanciais. Está em curso também uma radicalização identitária do espaço público, mais do que na sociedade, mas vai lá chegar. A radicalização é um processo difícil de travar, embora os seus limites sejam sempre os grandes números, os eleitores, a democracia.

O país está centrista — veja-se a vitória do PS, de que ninguém verdadeiramente quer tirar consequências, com a ilusão de que é um partido de esquerda. Na verdade, o PS é um partido muito mais centrista do que de esquerda, e que não ganharia se não fosse assim, mas que não tem vontade nem capacidade reformista. O centro está sólido, mas imóvel e estagnado, susceptível à corrupção e ao clientelismo, mas incapaz de reformas. E como tem tempo, pior ainda.

A possibilidade de reformas poderia ter vindo do PSD, em aliança com o PS, mas o falhanço de Rio no PSD, que se deveu em grande parte às ambiguidades face ao Chega, acabou com essa possibilidade. Os que se lhe seguirão vão-se enredar na direita. Por isso, em conjunto com a derrocada do CDS, houve também uma vítima colateral neste novo “tempo”: a direita moderada, um dos principais alvos da direita radical.

A nova ecologia mostra que a direita radical está na ofensiva, dominando grande parte do espaço público, com uma presença na comunicação social cada vez mais significativa e que não se mede nas listas ridículas das altercações no Twitter, este é “teu” e este é “meu”. Vai mais longe e mais fundo, é uma presença de contexto que molda a direcção editorial, as escolhas de temas, de perguntas, e, claro, de pessoas. Nas redacções, nos lugares, nos apresentadores, nos comentadores residentes, conforme o seu canal e horário, nas relações com financiadores, nas parcerias com fundações e com think tanks.

A direita, porque cresce, está arrogante e persecutória e a esquerda está na defensiva, moralista, encurralada e ineficaz. O moralismo é uma espécie de defesa no último quartel. Na sua variante mais extremista, naquilo a que se chama o “politicamente correcto”, a esquerda torna-se censória e iliberal, pretendendo que o controlo das palavras lhe dá o controlo da sociedade e assumindo causas com nomes nobres, mas práticas autoritárias.

Acantona-se assim num combate cultural que acaba por ser supra-social, e que desvaloriza as causas económicas e sociais da desigualdade, da exclusão, da injustiça. O resultado é um elitismo “cultural-chic”, que grassa como uma moda, na comunicação social, nas indústrias culturais subsidiadas, na intelectualidade dos suplementos culturais, mas está a perder a competição nos jovens com a direita radical sob veste anarco-liberal, na “Burberry school of economics”, e com os adultos no populismo conservador, e de facto machista e racista, do Chega.

Noutro aspecto, a esquerda torna-se vítima de si própria, porque o moralismo em política faz o jogo da direita que tem os pecados todos, a começar pela corrupção, a fuga aos impostos, o “planeamento fiscal” que leva a riqueza ganha cá para “lá”, a indiferença e o egoísmo social, mas que é menos afectada pela sua denúncia pública, como se as pessoas achassem que isso é “normal”, expectável, como agora se diz.

O moralismo torna pecadilhos de gente da esquerda escândalos de dimensão nacional que a direita usa com sanha muito para além da sua real importância. Vejam-se os títulos e torrentes de artigos sobre a exclusividade não cumprida de Mariana Mortágua, as obras ilegais na casa de Ana Gomes ou a imaginação curricular de Raquel Varela, e não é por acaso serem todas mulheres. Fizeram asneira? Fizeram, mas o que está em causa é a proporção do ataque. A proporção ainda conta ou não? Para este tipo de combate corpo a corpo, não.

A direita aponta alvos, e desenvolve campanhas, a esquerda está manietada ou porque quer ou porque não pode. A razão é que a dinâmica política dá hoje o poder de classificar à direita radical, que aponta a alvos demasiado passivos, porque ou têm culpa ou não “assumem”, como dizem as revistas do jetset, ou ficam a um canto à espera que passe o mau tempo. Não passa.

A guerra ucraniana agravou este processo, e teve um efeito devastador à esquerda, desequilibrando ainda mais um processo que já vinha de antes. Mas isso fica para uma continuação.»

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