11.4.22

França: o funil, os sapos necessários e a tragédia que acabará por chegar

 


«Aproveitando os falhanços da maioria socialista em que participou como ministro e a balcanização da direita democrática, Emmanuel Macron destruiu o sistema partidário francês, secando tudo à sua volta. A partir daí, foi promovendo Marine Le Pen como sua única e verdadeira opositora, sabendo que isso faria de todos os democratas seus reféns. Ele precisa de Le Pen, como Le Pen precisa dele. Ela representa o perigo inaceitável que obriga os democratas a votar em Macron, ele representa um regime sem alma, sem projeto social e sem alternativas dentro de si que leva cada vez mais gente a votar Le Pen.

Com os resultados deste domingo, as probabilidades de Le Pen vencer continuam a não ser pequenas. Mas Emmanuel Macron tem condições para ser eleito pelos mesmos que o elegeram há cinco anos: muitos dos que o desprezam, o consideram grande parte do problema, mas não querem ser governados por uma perigosa xenófoba. E governa graças a um sistema eleitoral absurdo que, nas legislativas, garante que metade dos eleitores destas presidenciais tenham uma representação de apenas 3% no Parlamento.

Ao longo destes anos, Le Pen foi sugando o descontentamento crescente. Nestas eleições, ela teve a ajuda de Eric Zemmour, que chegou a estar à sua frente (acabou com 7%) e fê-la parecer “frequentável” (como disse um jornalista francês), obrigando-a a centrar-se no discurso social e económico. Só Jean-Luc Mélenchon segura votos à esquerda e impede que a tragédia seja maior. É um egocêntrico patológico, mas, verdade seja dita, tem sido o único que, à esquerda, consegue mobilizar apoio popular (e de muitos jovens).

A tese que alimentou o pântano de Macron e tem insuflado Le Pen como sua alternativa é acarinhada por muitos centristas, até no PS português: a clivagem fundamental deixou de ser entre a esquerda e a direita, mas entre “globalistas” e “nacionalistas”, “iliberais” e “liberais”, entregando à extrema-direita o papel de ser alternativa descontente ao poder e anulando as alternativas políticas no campo político que recusa a xenofobia.

Não há uma dicotomia, há, cada vez mais, um tripé, como defendi num longo texto que escrevi há cinco anos: o consenso neoliberal da TINA, onde tanto cabem conservadores bastante virulentos como “progressistas” que casam truncados ideais de emancipação e formas letais de financeirização; o nacionalismo xenófobo que serve os mesmos interesses mas apela ao voto das classes médias e pequenos proprietários em perda e às classes populares excluídas da globalização; e uma alternativa da esquerda que não sonha apenas em gerir a derrota e não desistiu de políticas sociais e económicas alternativas – por vezes com traços populistas, no sentido que lhe dá Chantal Mouffe. Fazendo um paralelismo perigoso, podemos dizer que nas últimas eleições americanas estes espaços eram ocupados, respetivamente, por Clinton, Trump e Sanders.

Se a tese da dicotomia fosse verdadeira, Le Pen não se teria ficado pelos 34% na segunda volta das eleições de 2017 e venceria sem qualquer dificuldade esta segunda volta. Porque teria os votos dos supostos iliberais de Mélenchon que, somados ao da extrema-direita, lhe dariam bem mais de 50% sem precisar de um voto da direita tradicional. Não sei se Le Pen vencerá a segunda volta. Se vencer, não tem nada a ver com a divisão entre iliberais e liberais. Tem a ver com o profundíssimo ódio das classes populares francesas a Macron. A diferença, nestas eleições, é que a oposição poderia ser representada, numa segunda volta, pelo discurso social da esquerda, e não pela xenofobia da extrema-direita. Não o foi por dois pontos percentuais.

A esquerda tem culpas. Bastaria candidatos à esquerda terem desistido para Jean-Luc Melenchon (como até Segolene Royal defendeu) e afastariam Le Pen da segunda volta. Espero que, agora, os eleitores de Mélenchon tenham o pragmatismo que faltou aos que, votando no ecologista Yannick Jadot (4,5%), no comunista m Fabien Roussel (2,3%), na socialista Anne Hidalgo (1,7%) ou nos dois candidatos trotsquistas, permitiram que Le Pen fosse à segunda volta.

Há cinco anos, os eleitores de Mélenchon deram a vitória a Macron. Este ano, segundo as projeções, uma parte votará nele, outra menos numerosa (mas ainda muitos) votará Le Pen e a maioria ainda está inclinada para a abstenção. Conseguir levar esse voto irado com o que tem sido Macron até ao próprio Macron é uma tarefa hercúlea. Este agora é o momento para voltar a impedir o pior: que Le Pen governe. Votando no homem que, conscientemente, a alimentou. Ninguém disse que salvar a democracia não implicava engolir muitos sapos. Para continuarem, no dia seguinte, a combater Macron.

O centrão do neoliberalismo “progressista” (socorrendo-me de Nancy Fraser, que assim caracteriza os Novos Democratas de Clinton ou o New Labour de Blair) ou conservador bem se esforça para atirar estes eleitores para a extrema-direita. Se se continuar a esforçar muito, um dia acabará por acontecer. E terá finalmente a única bipolarização que lhe interessa: ou o ele ou o impensável. O seu projeto é afunilar a democracia até à total ausência de alternativas internas. Mais cedo ou mais tarde a tragédia acontecerá num país estruturante para a Europa, como a França. Não tenho dúvidas que prefere isso a aceitar qualquer alternativa a um modelo económico e social que vai deixando cada vez mais gente de fora. Cada vez mais gente para votar em Le Pen.»

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