«Não sei o que é mais insuportável: o complexo de superioridade moral euro-ocidental ou o cachiquismo (neologismo angolano para "subserviência", equivalente ao brasileirismo "viralatismo") de certas elites das nações periféricas, nomeadamente africanas e sul-americanas (talvez seja de acrescentar, também, as do sul da Europa).
Pensei nisso ao tomar conhecimento das notícias relativas ao acordo britânico-ruandês para enviar para o Ruanda os imigrantes chegados ilegalmente à velha Albion. O referido acordo confirma, como se isso ainda fosse necessário, o grau de miserabilidade em que a humanidade está presentemente mergulhada. Quando os povos aceitam tranquilamente ser governados por líderes medíocres e mesquinhos como a maioria dos dirigentes atuais, algo está muito mal e não é apenas no reino da Dinamarca.
Como noticiado pela imprensa, o plano consiste em recambiar para o Ruanda, um pequeno país na África Oriental com reconhecidos problemas de "espaço vital", as pessoas que chegaram ao Reino Unido de forma ilegal desde o passado dia 1 de janeiro. Uma vez chegadas àquele país africano, ser-lhes-á permitido iniciar um processo para se instalarem no país. As autoridades britânicas pretendem avançar com este plano já nos próximos dias, priorizando os homens que chegam sozinhos através do Canal da Mancha em pequenos barcos ou camiões.
Os custos do plano estão avaliados em 145 milhões de euros. A cifra, assim como as questões logísticas envolvidas, suscitaram muitas reservas por parte de funcionários do ministério britânico do Interior. Mas estão igualmente a ser levantadas reservas legais, morais e políticas. Apesar disso, a decisão do governo britânico foi aprovada, graças a uma prerrogativa especial que atribui aos titulares da pasta a responsabilidade individual por certas medidas, em determinadas condições.
A atual ministra britânica do Interior - note-se - chama-se Priti Patel. Com esse nome, não será ela própria descendente de imigrantes? Outra pergunta que se impõe é: o que ganha o Ruanda ao fechar este acordo com o Reino Unido? Seria interessante saber.
A verdade é que o Ruanda é um minúsculo país africano aparentemente bem governado por uma figura controversa que, na hipótese mais benigna, pode ser considerado um "déspota esclarecido". Faz parte dos "autocratas" queridinhos do Ocidente. Um dos seus mais importantes "conselheiros" internacionais (melhor chamá-los, talvez, lobistas) é precisamente um antigo primeiro-ministro britânico.
O país é também admirado por muitos governantes e cidadãos africanos, devido aos seus êxitos relativos no plano económico, bem como à "ordem e disciplina" internas. A maioria dos seus admiradores não fala, por exemplo, da discriminação social e "racial" exercida pelas elites nilóticas do país, que estão no poder, sobre os ruandeses de origem bantu.
O acordo entre o Reino Unido e o Ruanda para o envio dos imigrantes ilegais, além da contestação interna, está também a ser fortemente criticado pelas Nações Unidas, através do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados). O organismo já expressou, assim, a sua "forte oposição" ao mencionado acordo. Para o ACNUR, os últimos arranjos entre as autoridades britânicas e ruandesas acerca do assunto "apenas mudam as responsabilidades de asilo, fogem das obrigações internacionais e são contrárias à letra e ao espírito da Convenção sobre Refugiados".
Por seu turno, mais de 160 organizações não-governamentais classificaram o acordo como uma medida "cruel e mesquinha".
"Pessoas que fogem de guerras, conflitos e perseguições merecem compaixão e empatia. Elas não devem ser comercializadas como mercadorias e levadas para o exterior para tratamento", disse Gillian Triggs, alta-comissária adjunta do ACNUR. Os atuais líderes (?) do Reino Unido e do Ruanda devem ter pensado que ela estava a referir-se aos refugiados ucranianos.
Porca miséria.»
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