«Desde 2011 que há um debate semântico e inútil para saber se os orçamentos do Estado são ou não de austeridade. Em resposta a esta acusação, o novo ministro das Finanças, Fernando Medina, fez a lista de medidas sociais que vinham do Orçamento chumbado antes das eleições. Um Orçamento que já estava desfasado da realidade herdada da pandemia e agora está muito para lá disso. Só que o debate que agora conta, e contará por muito mais tempo do que Medina parece acreditar, é a inflação. Como não contribuir para uma espiral inflacionista sem criar um problema social e económico de enormes proporções, com perda radical de poder de compra?
Apesar de se saber que é difícil recuar na redução de impostos, a descida do ISP para compensar a impossibilidade de descer o IVA dos combustíveis é, apesar de efeitos limitados, uma medida correta por tentar mitigar um dos fatores da inflação generalizada – a outra é nos produtos alimentares e, acima de tudo, no preço das rações e fertilizantes. Outras medidas, como a suspensão da taxa de carbono, a redução de tarifas de acesso na eletricidade, apoios ao combustível nos transportes, subsídios à fatura do gás para a indústria ou apoios à agricultura têm exatamente a mesma função e estão corretas.
Mas não vale a pena ter ilusões. A tendência inflacionista é tudo menos passageira e localizada, como quer acreditar Fernando Medina. Vem da pandemia e dos cortes de produção na China (que com o ressurgimento da covid não vai melhorar), de problemas no transporte e da crise dos contentores, dos efeitos da guerra na produção de cereais e óleos alimentares na Ucrânia e na Rússia, do aumento exponencial dos combustíveis que vinha de antes e se agravou com as sanções à Rússia, da forma como a conjugação de todos estes fatores afeta a generalidade da economia. É impossível controlar uma inflação com origem externa tão alargada através de instrumentos direcionados, porque ela tenderá a alastrar a toda a economia portuguesa, que não é fechada ao exterior.
Instalou-se um discurso sobre os salários e a inflação que se baseia numa meia verdade para construir uma injustiça. Que a adaptação dos salários ao novo cenário macroeconómico, impedindo uma drástica redução do salário real, levaria o país a uma espiral inflacionista. Fernando Medina assumiu sem qualquer resistência este discurso – até compara com situações nos anos 80, quando Portugal tinha autonomia monetária e um banco central com poder real –, chamando à atualização de salários “motor interno para a inflação”. Por isso recusa atualizar os aumentos da função púbica – referência para os aumentos no privado. O que corresponde a uma forte redução do salário real.
Para além da contenção dos custos da energia, o Governo irá usar a redução salário real para conter a inflação – tentando reduzir a procura, o que corresponde ao processo de empobrecimento do período da troika. Os trabalhadores serão os únicos a pagar a fatura externa.
Se há sectores que sofrem com aumento de custos, eles não se distribuem de forma simétrica. Aumentar preços e lucros com a justificação da inflação será demasiado tentador para empresas que têm poder de mercado para fixar preços. Estarão completamente à vontade, porque o governo recusa mexer noutros fatores internos para a inflação. Bastou alguém balbuciar a criação de um imposto para lucros excessivos (que existe noutros países), para quem tem espaço no espaço mediático explicar que a fatura não pode ser partilhada. Cortar salários sim, mexer nos lucros nunca.
O que estamos a assistir é a uma redistribuição de rendimento de dentro para fora (que não controlamos) e, em Portugal, do trabalho para o capital (que controlamos). Se Medina for bem sucedido em conter um pouco a inflação por via do salário, sem interferir na formação de preços (considerado uma heresia), isso acontecerá exclusivamente à custa dos trabalhadores.
Baixar os salários reais, usando os trabalhadores como arma contra a inflação, será uma fisga contra um gigante global. Mas tenderá a ser permanente. É bom recordar que, desde 2010, os funcionários públicos, que funcionam como barómetro para os salários no privado, perderam 13% do seu poder de compra. As medidas extraordinárias do tempo da troika tiveram um papel central. Estes cortes no salário real nunca são compensados mais tarde. O que não impedirá apaixonados discursos sobre a necessidade de aumentar o salário médio dos portugueses.
À questão da perda de compra junta-se outra mais estrutural. Se as contas de Medina estão certas – e perante a incerteza quase absoluta, partirei desse princípio –, os salários reais cairão 0,8%, enquanto a produtividade crescerá 3,5%, em 2022. Isto corresponde a uma perda de peso do trabalho no rendimento nacional (que corresponde a uma transferência do trabalho para o capital) de 4,3%. Não há memória de uma coisa assim, neste século. O pior foi com Passos Coelho, em 2012, e ficou-se pelos 2,7%.
Da Europa, não temos razões para esperar boas notícias. É cada vez mais provável que o BCE responda à inflação com a receita clássica: aumentar as taxas de juro. Se esta receita é discutível quando a inflação tem origem na procura, é absurda quando resulta de falta de matérias primas, componentes e do preço da energia. Apenas juntará recessão à inflação. Como em 2009, parece acreditar-se que a melhor resposta para a crise é o inferno.
Este caminho terá efeitos económicos e sociais que rapidamente se tornarão políticos. Putin e os seus amigos de extrema-direita na Europa agradecerão. Em Portugal, quando o principal candidato à liderança do PSD se confessa saudoso de Passos Coelho, percebemos que o partido que lucrará com tudo isto, à direita, será outro: o Chega. Na Europa podemos vir a assistir a um remake de 2008. A mesma cegueira, os mesmos resultados. Em Portugal já começou.»
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