17.4.22

Volta o corpo, o toque e o beijo

 


«Quase tudo o que de nocivo se previu que iria ser reforçado, mal existisse uma fase de descompressão na gestão conjuntural da pandemia, se tem confirmado, com o agravamento da crise económica, psíquica, ambiental, comunicacional e política. Houve uma altura, no silêncio e desaceleração, que se idealizou que talvez fosse possível um pensamento mais social da economia. Mas nada disso. As compulsões da especulação, acumulação e extracção, que nos conduziram até aqui, regressaram a todo o vapor.

O interesse colectivo foi rapidamente esquecido pela primazia do lucro privado. Radicalizou-se o empobrecimento e o enriquecimento dos super-ricos. Uma certa sobriedade que se julgou possível foi rapidamente substituída pelo consumismo destravado. O espírito de solidariedade que se havia mostrado, foi sendo atropelado pela competição, desaparecendo quaisquer devaneios de sociedades mais justas e igualitárias. Até a adopção de tecnologias não poluentes continua uma miragem e regressou a chinfrineira total, não regulada, caótica, ao espaço urbano, como em Lisboa. Se existiram lampejos de uma outra vida possível em sociedade, percebe-se agora, tudo não passou de projecção demasiado optimista.

Quer a pandemia, como agora a guerra, irão ser utilizadas nos próximos tempos como expediente justificativo para todas as depressões que previsivelmente se irão aprofundar, mesmo sabendo-se que a estagnação económica, a miséria social e os ataques à democracia vêm de trás, sendo a pandemia e a guerra tanto causa, como consequência, do contexto actual.

Mas nem tudo são más notícias. Houve uma altura em que se imaginou que o vírus iria deixar traumas profundos nos corpos, ou que o efeito do medo e do distanciamento físico iriam provocar danos graves nas relações sociais e até na reformulação do inconsciente sexual. Vimos esse processo sobre o inconsciente colectivo nos anos da síndrome da imunodeficiência que afectou profundamente a disponibilidade erótica e a solidariedade afectiva entre grupos de indivíduos. Existia agora a possibilidade de aquilatar se iríamos ficar assustados com a proximidade, seja ela a fugaz e quotidiana, ou a íntima e erótica, e não parece que esteja a acontecer.

Com a pandemia a proximidade da pele tornou-se numa espécie de perigo metafísico. O corpo tornou-se lugar de contágio. Ou então, em algo imune e defensivo, quando em isolamento. A energia transformadora dos corpos deu lugar à luta pela sua sobrevivência. Agora, talvez como reacção ao cansaço da hiperconectividade e ao excesso de comunicação com ausência de significado, parece existir uma explosão de desejo libertador, uma reinvenção do afecto, uma vontade renovada de contacto. Sim, claro, ainda é cedo para grandes conclusões. A sensibilização fóbica em relação ao corpo, ao toque e carícia não desapareceram por completo. Os sinais e impressões são fragmentários, não permitindo avaliações consistentes, não estando também posto de lado cenários que impliquem retrocessos. Não existe apenas um quadro, mas vários, contraditórios e conflituantes.

Mas vai parecendo que as situações mais sombrias — laços humanos desfeitos, o beijo encarado como acto perigoso ou a ausência de ternura ou sensualidade — vão sendo transcendidas. Vislumbra-se isso em tudo aquilo que nos faz sentir vivos, nas sociabilidades, no lazer, na criação de comunidade ou nas manifestações artísticas e culturais. O que acaba por ser também sintoma de alguma esperança. Afinal, falamos de actos humanos norteados pelo prazer e pela vontade de contacto, produtores de sentido e de significado. O contrário de apelos políticos destrutivos.»

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