30.5.22

As guerras são muito antigas, mas não morrem


@Salvador Dali

 

«“O Homem, no começo, é um animal e só depois… deixa-se recobrir com uma camada de decência” 
Erich Maria Remarque em A Oeste Nada de Novo, 1929

Em 2022 tocam as sirenes da guerra anacrónica desencadeada pela Rússia numa Ucrânia que resiste com determinação. O Deus da Guerra tem com ele o Deus da Morte e da Destruição. As epidemias e as guerras atormentam muito a Humanidade. Podem parecer inevitáveis, mas são diferentes. Umas têm origem natural e procura-se a vacina, outras resultam de vontades humanas e têm uma indústria.

Mas mantém-se, em 2022, uma situação não civilizada, obscena, um escândalo: as guerras entre humanos, organizadas por grupos, países ou Estados. Existem há milénios, como um fungo agarrado à nossa pele (H. Arendt): a História parece gostar de guerras, de batalhas e dos seus heróis. Com o desenvolvimento da técnica, são cada vez mais mortíferas, dispendiosas e ameaçadoras, num instante são planetárias. A internet ajuda nas consultas de estatísticas de suas vítimas mortais: no século XX foram cerca de 160 milhões em 509 conflitos, na Primeira Guerra Mundial 20 milhões, na Segunda 60 milhões e, no século XXI (até 2018), dois milhões. No período da minha vida, cerca de 45 milhões de mortos em cerca de 100 conflitos. Será que a memória das guerras prescreve? (pergunta do meu texto no PÚBLICO online de 27/4/22). Penso que sim e, por isso, elas não “morrem”.

Em 2022, a Europa é de novo surpreendida por uma guerra no seu território, a primeira desde 2001 ou 2014, mais uma entre outras no mundo. Com notícias ao minuto e comentadores sapientes. As anunciadas fraquezas e incompetências do atacante são tantas que não tenho dúvidas sobre o desfecho da contenda. Os países ocidentais unem-se, esforçam-se em ajudar e aplicam sanções, estão em alerta. Organizações internacionais intervêm. Estou de acordo e compreendo esta reacção, mas para esta guerra nada de útil posso acrescentar para além do desejo que termine com justiça e que sejam salvas vidas. Sem confundir paz com ingenuidade ou cobardia.

Mas impõe-se tentar salvar o futuro da Humanidade e eliminar a obscenidade e o horror das guerras, de cada guerra. Henri Dunant, após ver os feridos deixados no campo de batalha de Solferino (1859), foi co-fundador da Cruz Vermelha Internacional e o 1.º prémio Nobel da Paz. Reza o testamento de A. Nobel que este prémio seria concedido àqueles que “fizeram o melhor trabalho pela fraternidade entre as nações, pela abolição ou redução de exércitos permanentes e pela realização e promoção de congressos de paz”. Em 2012 foi concedido este galardão à União Europeia.

Nunca mais! O grito foi apropriado no final da Segunda Guerra Mundial e, desde 1945, a ONU tem-se esforçado por ser um garante da paz através da sua Carta, das suas agências e da diplomacia. Em 2022 existem tribunais internacionais e um conjunto de instrumentos de direito humanitário relativos a crimes de guerra (sem prescrição), a restrições ao uso de algumas armas e à protecção de prisioneiros e não-combatentes. É um caminho para o futuro que já vem de longe (de H. Grotius, no séc. XVII), mas que ainda é insuficiente para resolver contendas e injúrias entre Estados sem guerras.

Razões muito poderosas resistem ao debate moral da guerra. Ainda nos agarramos ao conceito de guerra justa e aos critérios do princípio ético do duplo efeito: há causas imperativas, ideais positivos pelos quais se combate e o efeito negativo, o sofrimento não é desejado (nem sempre: os bombardeamentos para desmoralizar civis em 1940-45 foram premeditados). Os textos de História apresentam sempre as mais diversas justificações para cada guerra de acordo com a época. Alianças, ligas, coligações e tratados aparecem e desaparecem até novo conflito. Exaltam-se heróis combatentes, decoram-se datas e locais de batalhas, mas o sofrimento dos não-combatentes tende a ficar na obscuridade.

O mal e o sofrimento humanos serão comensuráveis? O filósofo Marcel Conche (1922-2022) definiu o sofrimento das crianças como referência injustificável do mal absoluto: elas ainda não têm a capacidade de aceitar a dor com uma capa sobrenatural e espiritual de resistência, de herói, sábio ou santo. A responsabilidade pelo futuro pertence aos adultos, mas as crianças e a comunicação social podem catalisar mudanças. Dois exemplos: um realizado, o outro em esperança.

Em 1972, Nick Ut fotografou numa estrada do Vietname a menina Kim de nove anos, nua, que fugia, chorando, de braços levantados. O napalm tinha queimado o vestuário e a pele. Esta foto foi prémio Pulitzer e provocou milhões de lágrimas. Em 1980 foi aprovada a proibição de uso de napalm contra civis. Em 2022, no dia 11 de Maio, Kim, agora embaixadora da UNESCO e feliz, visitou com Nick o Papa Francisco. Uma esperança?

Agora o meu segundo exemplo. Em 2022, num canal de TV francês, um vídeo é dedicado ao efeito do conflito na mentalidade das crianças ucranianas refugiadas. Surge na pantalha, em interior sombrio, uma menina de nove anos, Katya. De pé, olha a câmara com determinação. Após descrever o medo que sentiu com as bombas, perguntam: o que desejas para o futuro? Resposta de Katya: que a palavra guerra desapareça do dicionário. Mas que inesperada lição, pensei. Que tenha futuro este pedido. Terá?

A face da Katya recorda-me a pintura de Dalí A Face da Guerra, de 1940. Vejam-na. Parece não ter fim a lista de pintores e de escritores que têm sinalizado e descrito o sofrimento nas guerras contemporâneas. Pretendem abanar a nossa consciência, mas depois da emoção tudo volta a preparar-se para a próxima guerra. E a ciência e a tecnologia não têm uma solução? Até agora têm desenvolvido novas armas, mais letais, mais certeiras e automáticas que tendem a afastar os combatentes de perigos. E em percentagem a morte de civis tem vindo a aumentar. Aviões com aviadores são substituídos por mísseis e drones e as bazucas antitanque são substituídas por mísseis automáticos. A inteligência artificial e os robots poderão vir a fazer as tele-guerras do futuro. Mas, em 1945, a ciência proporcionou um patamar inesperado: as armas nucleares. Uma armadilha: é tão mortífera e destruidora que não acreditamos que volte a ser utilizada no futuro, donde podemos arriscar e avançar… E neste raciocínio não sei se receio mais os militares com experiência, se os civis com desejos.

Em 1983, Isaac Asimov fez previsões para 2019 sobre informatização, exploração espacial e guerra nuclear. Interessa esta última área: “A possibilidade de um conflito nuclear sempre existirá enquanto existirem armas nucleares.” Em 2022 podemos dizer o mesmo. De guerra em guerra e com a geoestratégia entre blocos atingimos uma situação de equilíbrio instável, perigosa. “Na realidade, a Terra seria gerida por quem tivesse a bomba nuclear preparada para atirar contra o território dos adversários. Ou, mais precisamente, por quem as tivesse em maior número, mais potentes e mais mortíferas. Era esse o equilíbrio. Para dizer a verdade, um pátio infantil em que cada criança teria o poder do último fogo.” É o que nos diz Lídia Jorge, no livro Estuário, ao descrever a segunda parte de um livro imaginário do personagem Edmundo que teria o título 2030 Estuário, 2018, D. Quixote, pp. 278-280.

Não temos muito tempo! Ao longo dos séculos, muitas chagas da Humanidade tidas por inevitáveis e naturais têm sido combatidas e eliminadas, mas a guerra é a mais resistente. A montante das leis deve existir uma convicção moral, uma nova educação desde criança para afastar a guerra e os armamentos pesados. Para evitar que tenham de ser os sobreviventes do holocausto nuclear a retirar definitivamente a palavra guerra dos dicionários. Obrigado Katya!»

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