5.5.22

O regresso à barbárie

 


«À medida que avança a guerra desencadeada por Vladimir Putin à Ucrânia e, em particular à sua população, vou-me deparando com artigos e comentários de pessoas que, começando por condenar a invasão russa, viram rapidamente a página, lembrando os crimes sobre as populações civis das guerras da Bósnia, da Tchetchénia, ou da Síria, entre outras. Fazem também questão de lembrar o “carácter nazi” do batalhão Azov, a força da extrema-direita na Ucrânia, etc...

Estão certos? Em minha opinião, estão errados. E estão errados, não porque as ditas guerras não tenham sido atrozes ou porque na história da Ucrânia não tenha havido colaboração com os nazis, mas porque a melhor forma de banalizar e desvalorizar um fenómeno é diluí-lo através de analogias, normalmente falsas. Estão errados porque se recusam a ver que cada caso é um caso com as suas diferenças e são essas diferenças que nos fazem reflectir e compreender o que está em causa.

Mas também há similitudes. E em algumas das guerras acima mencionadas vemos que o mesmo “dedo” que agora tenta esmagar a Ucrânia é também aquele que contribuiu decisivamente para a chacina de civis nomeadamente, na Síria e na Thetchénia. Mas esta constatação, longe de desvalorizar o que actualmente está a acontecer na Ucrânia, deve-nos, ao contrário, fazer compreender que Putin e a sua clique amordaçada e conivente não só não hesitarão em levar a cabo a destruição total da Ucrânia, como também em executar “ataques relâmpago” contra qualquer “ingerência” do Ocidente, como aliás já ameaçou.

Creio que todos compreendemos o que significam esses “ataques relâmpago”. É uma loucura? Sem dúvida, mas para um ditador como Putin, há 22 anos no poder e com um historial de seis guerras por si desencadeadas, nada é impossível, nomeadamente ficar para a história como o herói que conseguiu reconstruir o império russo.

A minha geração nascida no pós-guerra teve sorte porque viveu, e de alguma forma ainda vive, num tempo de paz, de liberdade e de respeito pelos direitos humanos, pelo menos neste Ocidente europeu. Habituámo-nos tanto a esta forma de vida que nos é difícil entender que o mesmo não acontece necessariamente noutros pontos do globo.

Creio que essa é uma das nossas fraquezas: a de acharmos que a nossa racionalidade é partilhada por todos. Mas não é: em particular a cultura russa é totalmente diferente. Quando falo de cultura, não me estou a referir às artes, literatura ou cinema, que, aliás, muito aprecio e foi com espanto e irritação que assisti ao absurdo de se retirar obras de arte russas de museus europeus ou à proibição de concertos de música russa… Mas neste caso, quando falo da cultura russa refiro-me a valores e comportamentos determinados em grande parte pela história, pela geografia e pelo clima. Uma cultura habituada ao poder absoluto, à violência, à negação do indivíduo em prol de um colectivo abstracto composto por uma massa indistinta de seres sem voz própria.

Há na população russa múltiplos e constantes exemplos do contrário. Mas normalmente as pessoas que ousam quebrar as regras são presas, torturadas e frequentemente assassinadas. Livros como Gulag, uma história, de Anne Applebaum, O Zero e o Infinito, de Arthur Koestler, ou A Rússia de Putin, da jornalista Anna Politkovskaya, assassinada à porta da sua casa em 2006, pela denúncia corajosa dos crimes de guerra cometidos pelo exército russo na Chechénia, são bem esclarecedores sobre a “racionalidade” russa.

Escrevi que a minha geração teve a sorte de nascer num pós-guerra que jurou “Nunca Mais”. Uma época que viu nascer organizações multilaterais como as Nações Unidas, a União Europeia, a NATO, a OCDE, a UNESCO e outras, cujo objectivo era trabalhar em comum para um futuro melhor nas diferentes áreas do desenvolvimento humano. Mas creio que estamos a chegar ao seu fim. A guerra na Ucrânia entra nas nossas casas e nas nossas vidas, confrontando-nos com uma realidade que julgávamos ultrapassada e, pior do que isso, para a qual não estamos preparados. E confronta-nos também com a possibilidade de um mundo que não gostaríamos de transmitir para as gerações seguintes.»

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