30.7.22

A difícil descolagem

 


«A primeira regra do viajante de 2022 é saber que, em princípio, ficará apeado em algum lugar. No meu caso, o comandante da Turkish Airlines informou-nos de que só existia pessoal para um veículo de abastecimento de água no aeroporto de Lisboa. No meio do caos aeroportuário, a informação dada aos passageiros pode não ser fidedigna. Certo, só a ligação perdida em Istambul. Mas no aeroporto de Lisboa tudo é possível. E não é só porque precisamos de outro urgentemente e há décadas. É porque a ganância o levou a esta decadência. Nos primeiros sete anos de concessão privada dos aeroportos portugueses, a VINCI teve resultados líquidos de €1174,5 milhões. No mesmo período, a ANA investiu menos €87 milhões do que estava previsto, e, mesmo com o aeroporto de Lisboa a rebentar pelas costuras, diminuiu o investimento face aos anos de gestão pública. Entre 2012 e 2019, enquanto o número de passageiros duplicava, o de funcionários apenas aumentou 21%. Vale o fraco consolo de o problema estar longe de ser português e partilhar o meu drama insignificante com milhões em todo o mundo. Como é que uma indústria milionária não previu e planeou a retoma do turismo em força, depois de dois anos em que se gastou menos e não se gozaram férias? Simples: este não é o tempo do planeamento. É o tempo do lucro e do pânico rápidos. Despede-se depressa, pede-se dinheiro ao Estado, e depois logo se vê.

Para aguentar o embate da pandemia, quando a Lufthansa perdia um milhão de euros por hora, as companhias de aviação europeias e americanas receberam cerca de €90 mil milhões dos contribuintes. Dinheiro que não estão a devolver à economia quando se mostram incapazes de acompanhar a retoma. Até setembro de 2021, perderam-se 2,3 milhões de postos de trabalho na indústria da aviação. Agora, graças aos níveis de desemprego historicamente baixos nos dois lados do Atlântico, companhias de aviação e aeroportos não conseguem contratar pessoal para gerir as operações mais básicas. Só numa semana de junho foram cancelados cerca de dois mil voos na Europa, com o aeroporto de Amesterdão a ser responsável por quase 10% dos passageiros em terra. Vários aeroportos europeus ofereceram prémios e aumentos salariais aos funcionários que indicassem amigos para trabalhar ou prémios horários de €5,5. Nem assim. Perdido o vínculo, e tendo começado a trabalhar noutros sectores, poucos parecem disponíveis para voltar a carregar malas de 20 quilos às três ou quatro da manhã para quem os despediu mal as coisas ficaram difíceis.

Da mesma forma que as empresas aproveitaram a aterragem para ganhar poder sobre os seus trabalhadores, os trabalhadores aproveitam a descolagem para ganhar poder sobre os seus patrões. Multiplicam-se as greves de quem, depois de anos sem aumentos, exige partilhar os ganhos da retoma. Os pilotos da companhia de aviação escandinava, a SAS, pararam durante duas semanas. Queriam respeito por quem esteve uma vida na empresa. Aceitavam trabalhar mais horas e receber menos, mas exigiam que os seus colegas, despedidos durante a pandemia, fossem readmitidos, em detrimento de pessoal menos experiente e mais barato que a companhia queria contratar. Uma greve solidária que deve servir de exemplo para quem não queira ser descartável. Se os ventos estão favoráveis, que se aproveite para mudar um pouco as regras deste jogo viciado. Sem ceder à chantagem de falsos e seletivos “interesses nacionais”, ignorados sempre que estão em causa os lucros.

O aeroporto de Heathrow “optou por não agir, não planear e não investir”, criando “um Armagedão” para os passageiros. Quem o escreveu não foi um sindicato, mas a Emirates. Na origem do comunicado a proposta de cortar mais de 50% dos voos diários permitidos. Uma diminuição superior à saída de 30% da força de trabalho. Algumas companhias descobriram agora que um trabalhador acabado de chegar a uma empresa não consegue fazer o mesmo que quem foi despedido com anos de formação e experiência. Por isso, vários aeroportos proíbem que algumas funções de segurança e responsabilidade sejam desempenhadas nos primeiros cinco ou seis meses de contrato. E como as companhias aéreas têm externalizado quase tudo, numa cadeia cada vez mais complexa e difícil de gerir, basta uma das empresas falhar, seja no check-in ou nos serviços de terra, e o avião não levanta voo. Nem um ano será suficiente para que os aeroportos voltem a funcionar normalmente.

As empresas aeroportuárias despediram porque partiram do princípio, tão em voga, de que o seu mercado de trabalho é como os outros. Que despedindo num dia se contrata no outro, quando a procura começa a subir. Só que o mercado laboral é feito de pessoas. Que fazem contas à vida, têm interesses e, quando encontram outro emprego, têm pouca vontade de voltar a trabalhar para quem as abandonou em tempos difíceis. Esta “mercadoria” tem vontade própria e tende, quando pode escolher, a valorizar quem a valorizou. Há um dia da caça, outro do caçador. A única boa notícia deste caos é que chegou o dia da caça. Vale bem um voo perdido.»

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