«Faz-se a guerra de todas as formas e em todas as frentes, a lição é conhecida. Toda a guerra procura ser total. Bombardear, destruir, ocupar, saquear, extorquir, animalizar o inimigo, essa é a essência do império, de qualquer império, e não há belicismo benévolo. A guerra é exterminista por natureza e aquela a que agora assistimos é a confirmação da regra sem excepção. Não é portanto de espantar que qualquer dos lados da guerra, seja o dos invasores, seja o dos invadidos, procure firmar vantagens em todos os terrenos e que a propaganda, a informação e a desinformação sejam das suas dimensões maiores num tempo de hipercomunicação. No entanto, temos direito a colocar a questão dos limites: deve a opinião pública ou, se se quiser, devem os opositores da guerra contrariar a contaminação generalizada dos territórios da cultura e do desporto pelas bandeiras da morte? A minha resposta é que não só o podemos como o devemos fazer.
Já se discutiu este tema nas primeiras semanas da invasão da Ucrânia e foi induzido pelo excesso de zelo dos censores. Da Rússia, pouca novidade, o regime de controlo da opinião foi reforçado por leis de exceção que proíbem o uso da palavra para designar a coisa e as manifestções continuam a ser reprimidas. A surpresa pode ter sido o comportamento de autoridades europeias (mas seria surpresa, ou houve outras guerras em que aconteceu o mesmo?), e a deriva frenética dos apaniguados, que proibiram Tchaikovsky e Dostoevsky, anularam as apresentações do Bolshoi ou a participação de filmes russos em festivais, culparam Tolstoy ou Tarkovsky pelos males de Putin e ergueram o sectarismo como um estandarte. Foram longe demais e pareceu pouco tino. Mas, como seria de esperar, voltam à carga quando a circunstância parece favorecer a queima dos livros, dos filmes ou dos músicos suspeitos. Nas últimas semanas, vários “influenciadores” dedicaram-se a tal tarefa, sob os mais variados e imaginosos pretextos.
Nesta escalada, dentro de pouco tempo estaremos a discutir se algumas delegações nacionais devem ser expulsas do Jogos Olímpicos. E vale a pena meditar sobre essa escolha extrema, porque se vai colocar e a resposta muito dirá sobre o caminho que seguimos nesta encruzilhada. A realização dos Jogos não será posta em causa, por se tratar de Paris e Los Angeles (jogos de verão) e Cortina (jogos de inverno), se bem quem possa ficar a dúvida sobre se seriam agora aceites os Jogos de Pequim do inverno passado. Mas tenha a certeza de que o Comité Olímpico Internacional será pressionado para excluir vários países em 2024. Não deve aceitar essa pressão.
Os Jogos terão começado em algum momento da antiguidade, talvez no século VIII antes da nossa era, juntando desportistas (e militares) de várias cidades-estado gregas, que se guerreavam mais frequentemente do que praticavam a paz. Aliás, algumas das competições tinham – e têm – um marcado cunho militar (lançamento do dardo, tiro ao arco e agora também com pistola, boxe e outras formas de luta), mas os Jogos exprimiam a festa religiosa e popular em que a guerra era suspensa. Os Jogos faziam paz e assim deviam continuar a fazer. Foi por isso um erro que alguns Jogos tivessem sido boicotados por protagonistas da Guerra Fria (os de Moscovo, 1980, e os de Los Angeles, 1984) e é essa estratégia que se vai repetir em 2024. Proibir músicos de atuarem onde quiserem, o que para já só é proposto pelos extremistas que buscam chamar a atenção para a extravagância da censura, é somente um aperitivo para essa nova Guerra Fria. O novo Muro será instalado dentro das bibliotecas, dos cinemas e salas de concertos, e as Olimpíadas vão ser o grande teste para este arame farpado. Não falta muito para se começar a falar da virtude de acabar com os Jogos como eles sempre se anunciaram.»
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