26.7.22

Educação, Constituição e Convenção Europeia dos Direitos Humanos

 


«Um pouco por todo o mundo, pais e educadores têm-se oposto à frequência, pelos seus educandos, de certas disciplinas ou conteúdos curriculares, alegando razões religiosas, morais, ou de consciência. O caso de Famalicão é, por isso, a declinação portuguesa de um fenómeno bem mais vasto, e podemos colher auxílio noutras jurisdições para enquadrar a questão.

É certo que, à luz da nossa Constituição, o Estado português apresenta vinculações que estão ausentes noutras ordens jurídicas. É de realçar o artigo 73.º, que estabelece o dever do Estado de promover a democratização da educação para que a mesma contribua para a “igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida ativa”.

Obviamente, a educação não é um processo alheio a valores. A educação não pode ser ideologicamente programada, como o impõe o artigo 43.º, n.º 2, mas isso não significa que seja valorativamente assética. Como reconhece o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), muito dificilmente certas disciplinas não terão, em maior ou menor medida, ressonância ética, filosófica ou moral.

À luz da Constituição, e do Direito Internacional dos Direitos Humanos, o Estado deve respeitar as convicções morais e religiosas de cada um, designadamente dos pais, e o direito destes de educar os seus filhos de acordo com essas convicções. É inequívoco, aliás, que os pais são os principais responsáveis pela educação e ensino dos seus filhos.

No entanto, a escolaridade obrigatória implica deveres públicos relativamente aos pais e encarregados de educação, tal como o dever de garantir que os alunos frequentam as aulas e o currículo obrigatório. O não cumprimento destes deveres pode dar lugar a sanções. Nos termos da jurisprudência do TEDH, o desenho dos currículos compete aos Estados, devendo a informação e o conhecimento ser enquadrados de modo objetivo, crítico e plural, dando aos alunos ferramentas para desenvolver um espírito crítico.

Se estes limites, bem como as crenças religiosas e filosóficas dos pais, forem respeitados, o Estado é livre de desenhar os conteúdos, estabelecer a sua obrigatoriedade, e aprovar, ou não, isenções à frequência de certas disciplinas. Aliás, relativamente às isenções, o Tribunal acrescenta que as mesmas podem até ter um efeito pernicioso e estigmatizante, potenciando um conflito de lealdades entre a escola e os pais. O TEDH salienta ainda que o pluralismo na educação é essencial para preservar o Estado de direito democrático.

Existem casos em que a recusa dos pais em autorizar a frequência dos filhos de disciplinas de educação sexual, ética, ou mesmo o ensino presencial, conduziu à aplicação de sanções penais (penas de multa e de prisão), e à retirada do poder paternal, concretamente por parte do Estado alemão. Em todos esses casos, o TEDH considerou não ter ocorrido violação de parâmetros da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Situações destas podem-nos parecer drásticas, mas demonstram claramente que, em matéria de educação, e dentro dos limites definidos pelo Tribunal, os Estados têm competências para garantir que as convicções pessoais dos pais não interferem no direito dos filhos à educação.

A ação do Estado visa precisamente permitir que a liberdade de consciência dos pais não interfere na liberdade de consciência dos filhos, garantindo que os alunos podem formar livremente as suas convicções, dando-lhes condições para virem a ser adultos livres.

Existe espaço para o debate crítico sobre os conteúdos curriculares e as ferramentas pedagógicas do ensino obrigatório. Esse debate é próprio de sociedades plurais e o dissenso não deve ser aniquilado, nem esse deve ser o objetivo da escola, nem da educação. Tal debate deve ser travado, primordialmente, no espaço democrático, reservando-se para as restantes autoridades, designadamente os tribunais, situações em que o Estado, notoriamente, não respeitou os limites que se lhe impõem, designadamente em matéria de respeito pelas convicções religiosas e morais dos pais.

Quanto ao respeito que o Estado deve às convicções religiosas e morais dos pais, vale a pena, contudo, salientar um aspeto crucial que resulta da jurisprudência do TEDH, e que merece profunda reflexão, em tempos de crescente polarização: em Estado de direito democrático, não existe um direito humano a não sermos confrontados com opiniões contrárias às nossas crenças e convicções – nem a isolarmos os nossos filhos do pluralismo próprio das sociedades contemporâneas.»

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