«O mundo está fascinado com a morte de Elizabeth. Nunca a morte de um político, mais ainda quem tivesse representado o seu povo por eleição, recebeu tal atenção. O universo mediático, que é onde respiramos, inunda-nos de imagens celebratórias deste funeral ao longo de uma dezena de dias, incluindo solenidades em catadupa e insistentes demonstrações de ansiedade e devoção de populares e dignitários.
Há nisso respeito por uma figura que os britânicos se habituaram a ver a representar cuidadosamente o seu papel nesta trama que é a monarquia, porventura compungida pelo comportamento, quantas vezes boçal, de filhos e netos, e entretanto movendo-se vagarosamente entre as intrigas da corte e os desastres do seu império, que foi desabando em vergonha e cinismo durante este reinado. Mas há ainda a ocupação obsessiva do espaço público, esta morte telenovelisada é a chave para tentar preservar prestígio na representação de uma monarquia que sofre sempre que passa o poder: é demasiado óbvio que a transmissão da coroa por hereditariedade, ou a sua consagração com uma religião de Estado, são relíquias medievais que não escapam à comparação democrática. Morreu então Elizabeth e a espetacularização do seu passamento atinge píncaros que nunca alcançou em vida.
E morreu Godard. Não terá tantos dias de exéquias, o caixão não viajará de palácio em palácio, faltarão as missas compungidas, a Comunidade de Madrid não declarará três dias de luto, não haverá bandeira a meia haste por esse mundo fora, não virão chefes de Estado fazer-se fotografar no funeral, nem será transmitido em direto, faltarão as notas oficiosas e oficiais que não serão publicadas pelas diversas chancelarias. No entanto, Godard marcou mais o nosso tempo do que Elizabeth.
Godard trabalhou, Elizabeth não. Ele inventou, ela repetiu.
Godard criou, Elizabeth conservou. Ele viveu a vida difícil, ela viveu a vida fácil.
Godard submeteu-se à opinião do público, ela via o povo como súbditos que se curvavam.
Godard transgrediu, atreveu-se, inventou. Ela protegeu tradições para se opor à modernidade.
Godard iluminou, o herdeiro dela gaba-se de ser um anti-iluminista.
Godard trabalhou com outra gente, fez atrizes e atores, deu-lhes vida, criou saber. Elizabeth preservou uma modorra infinitamente aborrecida.
Godard deixa uma herança, vamos ver os filmes dele enquanto houver cinema. Elizabeth deixou Carlos e uma família que em parte se mostra e em parte se evita.
Para o que interessa, que é a cultura, ou o que nos faz partilhar a vida, as ilusões, os encantamentos, as nostalgias, a esperança e a realidade, é de Godard que nos vamos lembrar. E essa memória e respeito pela obra será a homenagem que nenhum poder dinástico jamais alcançará.»
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3 comments:
Desculpe, mas essa comparação de Francisco Louçã é tão descabida, tão sem propósito, que me apetece repetir aquela frase que aprendi na minha adolescência passada em Lisboa, e agora me ocorreu: "Isso, é o mesmo que comparar o Rossio com o olho do cu".
Godart teve o seu lugar na história do cinema, a Rainha Isabel II teve o seu lugar na História de Inglaterra.
Obrigada.
Boa Janita.
Realmente, vindo do bloco político que usa tshirts do Che... isto do culto de personalidade dos políticos é uma coisa tão feia.
Dizem que o funeral do Staline também teve muita atenção, desconheço se as televisões estrangeiras lá foram filmar. Embora duvide, que aquilo era gente que apreciava a sua privacidade, até mandaram fazer um muro alto e tudo.
O Dr. Louçã devia peregrinar lá por essas terras atrasadas das Dinamarcas, Holandas e afins, de modo a libertar o povo oprimido e atrasado do fardo das relíquias medievais.
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