13.9.22

Godard foi mais importante do que Elizabeth

 


«O mundo está fascinado com a morte de Elizabeth. Nunca a morte de um político, mais ainda quem tivesse representado o seu povo por eleição, recebeu tal atenção. O universo mediático, que é onde respiramos, inunda-nos de imagens celebratórias deste funeral ao longo de uma dezena de dias, incluindo solenidades em catadupa e insistentes demonstrações de ansiedade e devoção de populares e dignitários.

Há nisso respeito por uma figura que os britânicos se habituaram a ver a representar cuidadosamente o seu papel nesta trama que é a monarquia, porventura compungida pelo comportamento, quantas vezes boçal, de filhos e netos, e entretanto movendo-se vagarosamente entre as intrigas da corte e os desastres do seu império, que foi desabando em vergonha e cinismo durante este reinado. Mas há ainda a ocupação obsessiva do espaço público, esta morte telenovelisada é a chave para tentar preservar prestígio na representação de uma monarquia que sofre sempre que passa o poder: é demasiado óbvio que a transmissão da coroa por hereditariedade, ou a sua consagração com uma religião de Estado, são relíquias medievais que não escapam à comparação democrática. Morreu então Elizabeth e a espetacularização do seu passamento atinge píncaros que nunca alcançou em vida.

E morreu Godard. Não terá tantos dias de exéquias, o caixão não viajará de palácio em palácio, faltarão as missas compungidas, a Comunidade de Madrid não declarará três dias de luto, não haverá bandeira a meia haste por esse mundo fora, não virão chefes de Estado fazer-se fotografar no funeral, nem será transmitido em direto, faltarão as notas oficiosas e oficiais que não serão publicadas pelas diversas chancelarias. No entanto, Godard marcou mais o nosso tempo do que Elizabeth.

Godard trabalhou, Elizabeth não. Ele inventou, ela repetiu.

Godard criou, Elizabeth conservou. Ele viveu a vida difícil, ela viveu a vida fácil.

Godard submeteu-se à opinião do público, ela via o povo como súbditos que se curvavam.

Godard transgrediu, atreveu-se, inventou. Ela protegeu tradições para se opor à modernidade.

Godard iluminou, o herdeiro dela gaba-se de ser um anti-iluminista.

Godard trabalhou com outra gente, fez atrizes e atores, deu-lhes vida, criou saber. Elizabeth preservou uma modorra infinitamente aborrecida.

Godard deixa uma herança, vamos ver os filmes dele enquanto houver cinema. Elizabeth deixou Carlos e uma família que em parte se mostra e em parte se evita.

Para o que interessa, que é a cultura, ou o que nos faz partilhar a vida, as ilusões, os encantamentos, as nostalgias, a esperança e a realidade, é de Godard que nos vamos lembrar. E essa memória e respeito pela obra será a homenagem que nenhum poder dinástico jamais alcançará.»

.

3 comments:

Janita disse...

Desculpe, mas essa comparação de Francisco Louçã é tão descabida, tão sem propósito, que me apetece repetir aquela frase que aprendi na minha adolescência passada em Lisboa, e agora me ocorreu: "Isso, é o mesmo que comparar o Rossio com o olho do cu".
Godart teve o seu lugar na história do cinema, a Rainha Isabel II teve o seu lugar na História de Inglaterra.
Obrigada.

Monteiro disse...

Boa Janita.

Jon D. disse...

Realmente, vindo do bloco político que usa tshirts do Che... isto do culto de personalidade dos políticos é uma coisa tão feia.
Dizem que o funeral do Staline também teve muita atenção, desconheço se as televisões estrangeiras lá foram filmar. Embora duvide, que aquilo era gente que apreciava a sua privacidade, até mandaram fazer um muro alto e tudo.
O Dr. Louçã devia peregrinar lá por essas terras atrasadas das Dinamarcas, Holandas e afins, de modo a libertar o povo oprimido e atrasado do fardo das relíquias medievais.