«O mecanismo de escrutínio aos candidatos a cargos no Governo é uma história tão ardilosa que merece um primeiro prémio da dissimulação. O que prometia ser uma revolução acabou num suspiro. O que fora anunciado como um instrumento redentor das escolhas para altos cargos revelou-se sob a forma de um questionário de Proust. Vale mais do que as perguntas de Verão aos famosos, porque, ao menos, obriga os inquiridos a evitar a mentira; mas se as 36 perguntas são um mecanismo de escrutínio, o mecanismo é uma geringonça e o escrutínio uma brincadeira.
O mecanismo surgiu da aflição causada por erros sucessivos nas escolhas de membros do Governo e, como sempre acontece, a aflição não é boa conselheira. Em determinado momento, quando António Costa tentou envolver o Presidente da República, chegou-se a suspeitar que em causa estava um alto desígnio do Estado. Pelo meio, citaram-se exemplos de boas práticas internacionais ou enumeraram-se instâncias de avaliação e fiscalização que iam do Tribunal Constitucional à Assembleia da República.
Tudo acabaria, no entanto, em três dúzias de perguntas sobre questões básicas entre o património ou os impostos. Os últimos casos sugerem que essas perguntas básicas não foram feitas aos candidatos a secretário de Estado, é certo. Mas se tivessem sido feitas e respondidas, nada garante que o escrutínio salvasse o país de escolhas como as de Alexandra Reis ou de Carla Alves.
Recordemos o que António Costa disse no Parlamento sobre o caso da ex-secretária de Estado da Agricultura. Em resposta a Catarina Martins, o primeiro-ministro afirmou que Carla Alves garantira ao seu gabinete que “pela conta dela não passou qualquer dinheiro não justificado”. Se a pergunta escrita fosse por aí, a resposta seria a mesma e nada a teria impedido de chegar ao Governo.
O inquérito aos candidatos ao Governo faria sentido, se fosse apenas a primeira peça de um escrutínio a sério. Na Comissão Europeia, as respostas dos candidatos ou nomeados são escrutinadas pela Comissão dos Assuntos Jurídicos do Parlamento Europeu e quem as assina é sujeito a audições dos eurodeputados. Isso, sim, é um mecanismo de escrutínio.
A invenção do Governo pode ser considerada melhor do que nada. Sempre que um candidato mentir, sempre se pode ir ao inquérito e expor a mentira por escrito. Mas, no essencial, depois de tanta solenidade na resposta à crise das demissões, de tanta expectativa e de tanta necessidade de transparência, o que acabou por ser anunciado é ridiculamente insuficiente. Um formalismo que, quando muito, servirá para os governos se desculparem das más escolhas.»
P.S. – As 36 perguntas podem ser lidas no Diário da República AQUI.
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