12.1.23

Sem nojo nem pudor

 


«O último caso no Governo – à hora a que escrevo – foi a ida de Rita Marques, ex-secretária de Estado do Turismo, para a The Fladgate Partnership, ficando à frente da gestão de várias unidades hoteleiras. Entre elas a WoW (World of Wine), que recebeu benefícios fiscais graças a um despacho da governante, assinado a menos de dez dias das eleições. Neste caso, a secretária de Estado já não está na alçada do Governo e, politicamente, pouco pode ser feito.

Não é a primeira vez que alguém sai de um ministério para trabalhar numa empresa que tutelou ou beneficiou. Em Portugal, na Europa e no mundo estas portas-giratórias sempre estiveram bem oleadas. Alguns dos mais ativos moralistas que vou ouvindo vieram da política e povoam conselhos de administração, como administradores não-executivos; outros instalam-se em escritórios de advogados, oferecendo a sua agenda de contactos políticos. Seria bom não vermos como excecional o que infelizmente não o é. Talvez seja o descaramento, mas já lá vou.

Um dos casos mais escandalosos é antigo: depois de negociar um contrato ruinoso com a Lusoponte, que teve de ser várias vezes renegociado, Ferreira do Amaral foi dirigir a empresa. Apesar de ter cumprido largamente os prazos, o choque entre os interesses do Estado, que não defendeu, e a carreira privada que depois seguiu é demasiado evidente. Mas não foi o único. Não havia ministro de Agricultura que não acabasse na celulose, não havia ministro das Obras Públicas que não fosse para uma construtora. Alguns respeitadíssimos.

Aqueles que perdem tempo a falar das mordomias dos políticos, que ganham menos do que qualquer administrador de uma empresa do seu sector, não percebem que o político desonesto não enriquece no cargo, enriquece depois. Há um livro antigo de António Sérgio Azenha, “Como os políticos enriquecem em Portugal”, que se deu ao trabalho de fazer as contas, mostrando que demasiadas vezes não é verdade que as pessoas, sendo da área, se limitem a regressar à sua atividade. Não faltam novos talentos da gestão ou na advocacia saídos da política, não faltam extraordinários saltos patrimoniais na década seguinte a por lá passarem. Dos casos que analisou, o enriquecimento chega a 2956% em 12 anos.

Aquilo de que temos de ter a certeza é que o Estado não é prejudicado e ninguém é beneficiado pela expectativa de um lugar ao sol para o governante. Por isso, definiram-se períodos de nojo. Já foi um ano, passou para três. Até 1995, os titulares de cargos políticos não podiam exercer pelo período de um ano cargos em empresas privadas que prosseguissem atividades no sector por eles diretamente tutelado, mas apenas se tivessem sido objeto de privatização ou beneficiado de incentivos financeiros ou fiscais. Em 1995 passou para três anos e em 2019 alargou-se a interdição a empresas relativamente às quais se tenha verificado uma intervenção direta do titular de cargo político. Mas ao passar para três não fizeram a respetiva atualização da “punição” e mantiveram-se os três anos para poder regressar ao sector público. Deveriam ser mais, como é evidente.

Apesar das habituais transferências da política para as empresas, que fazem parte das regras do jogo de um poder económico que prefere não confiar no nosso voto para tratar dos seus negócios, costuma haver mínimos de pudor. A falta de vergonha de Rita Marques diz qualquer coisa sobre o fundo do tacho onde se vão recrutar governantes. Nem sequer dá espaço para debate: o período de nojo de três anos foi encurtado para 38 dias. Não comete um crime, apenas estará impedida de voltar a funções políticas durante três anos, o que, nestas circunstâncias, corresponde a um vazio de consequências.

O erro é não ir às empresas, garantindo que o "crime" de cooptação de políticos que as beneficiam não compensa. Não sou jurista, mas imagino que se não houver qualquer irregularidade na atribuição do apoio à WoW nem prova de qualquer relação de causalidade, ela não pode ser anulada. O que a lei deveria garantir era a exclusão, durante alguns anos, de apoios ou contratação pública a empresas que recrutem ex-governantes dentro do período de nojo. Não se ficaria a rir Rita Marques, a quem o bom salário comprou a vergonha na cara.»

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