9.2.23

As casas têm donos, as cidades são de todos

 


«Foi preciso morrerem dois imigrantes num incêndio que deflagrou num minúsculo T0 onde a ganância especulativa de um arrendatário (aparentemente sem responsabilidade da senhoria) amontoava cerca de vinte pessoas para o país perceber o número infindável de Odemiras que escondemos no centro das nossas maiores cidades.

Ainda assim, há quem finja que não percebeu, como Luís Montenegro. Questionado sobre a tragédia, o líder do PSD entendeu que talvez fosse boa ideia afinar as linhas de convergência com o Chega, garantindo que é preciso controlar a imigração para acolhermos estes “colaboradores do nosso desenvolvimento”, escolhendo se são os que queremos. Não é por acaso que a novilíngua das relações laborais, onde os trabalhadores desapareceram para dar lugar aos colaboradores, chegou à imigração. De facto, são estes “colaboradores” sem quaisquer direitos, trabalhando à peça nas plataformas de distribuição alimentar, que garantem o “nosso” desenvolvimento.

O resultado destas cidades construídas pela vertigem da financeirização do imobiliário, onde o direito de propriedade nunca pode ser condicionado, são malhas urbanas cada vez mais estratificadas, até se tornarem em condomínios interrompidos por Odemiras. Para o trabalho desqualificado sobram os que aceitam viver em camaratas, amontoados a 150 euros a cabeça, garantindo rendas impossíveis para qualquer trabalhador que receba ordenado médio em Portugal.

No entanto, Lisboa nunca perdeu, nos últimos 40 anos, tão pouca população como agora. As casas que professores, enfermeiras, trabalhadores dos serviços ou polícias deixaram de conseguir pagar – empurrados para uma periferia cada vez mais distante, porque a inflação galopante do preço das casas espalha-se como uma mancha de óleo – dão guarida aos reformados do norte da Europa e a nómadas digitais que gozam das borlas fiscais de regimes de exceção inacessíveis ao comum dos mortais. Para lá da evidente injustiça fiscal, uma disparidade de tratamento que alimentará o ressentimento social que apadrinhará todos os extremismos xenófobos, os nómadas não garantem escolas ou hospitais a funcionar. Não fazem e fixam cidade, porque ela é apenas um cenário. O que precisamos é de imigrantes. Daqueles que Montenegro quer, ao contrário de nómadas e reformados, selecionar.

Esta crise habitacional afeta transversalmente quase todos os aspetos da nossa vida em comunidade. Se é impossível viver perto do local onde há empregos teremos a perpetuação de um modelo urbano, com horas perdidas nos transportes ou nos carros que entopem a entrada das grandes cidades e as consequências ambientais e de saúde pública que conhecemos. Num futuro tão próximo que se confunde com o presente, levará à desertificação de serviços essenciais por falta de professores (como já acontece em Lisboa), polícias, enfermeiros ou até aos trabalhadores necessários para a atividade turística que tudo comanda e norteia (como já acontece no Algarve).

A crise da habitação não é uma originalidade portuguesa. Basta passar os olhos pela imprensa internacional para perceber que, da Irlanda a Berlim, dos EUA à Nova Zelândia, o problema é global. Anos de juros baixíssimos, retorno industrial estagnado e crescimento do turismo, com o aliciante do Alojamento Local poder fazer de cada proprietário um pequeno hoteleiro, trouxeram-nos aqui. O que torna a nossa crise particularmente aguda é a ausência de resposta pública, pois temos 2% de habitação social onde a maioria dos países europeus tem mais de 10%, e a extensão do Alojamento Local em Lisboa, a cidade europeia recordista por 100 mil habitantes.

A urgência de uma intervenção do Estado para criar um parque público que se veja choca com as regras de contratação pública impostas ao Estado, não permitindo que isso se faça a tempo de evitar a implosão económica e social. Em nome da suspeição permanente sobre todo e qualquer decisor político e da vontade de fragilizar o setor público para que ele entregue cada vez mais funções e oportunidades de negócio ao privado, construi-se um edifício jurídico que está a levar à paralisação da máquina do Estado. Em todas as áreas.

Se a habitação é um bem escasso, precisamos de políticas públicas que garantam acesso. Desde logo, na regulação do Alojamento Local, não autorizando novas licenças nas zonas mais pressionadas e rateando as existentes. E, mesmo sendo um trauma nacional, temos de voltar ao tema do controlo do preço máximo das rendas. Só em Portugal, onde parece vigorar a tese que o direito à propriedade se sobrepõe a todos os outros, é que estas ideias são tratadas como radicais. Como faz notar o “Diário de Notícias”, num bom trabalho de Fernanda Câncio, em 13 dos 27 países da União Europeia há controlo do preço das rendas e, em muitos, a legislação define até o que são preços “usurários”. Na Alemanha, estas rendas são um crime previsto na lei, com penas de prisão até três anos.

Portugal é, de acordo com a Delloite, o país europeu com maior stock de casas. Então, porquê a escassez? Porque quase dois milhões estão em alojamento local, segunda habitação ou desabitadas para serem usadas como meros veículos de enriquecimento financeiro ou poupança. E é neste contexto único na Europa que se gerou uma polémica sem fim, a propósito das declarações de Mariana Mortágua defendendo penalizações fiscais que “obriguem” os proprietários de casas devolutas a coloca-las no mercado de arrendamento.

No estilo que muitas vezes mata o Bloco, para que as suas propostas pareçam mais radicais do que são, o objetivo está corretíssimo – deve haver discriminação fiscal positiva e negativa para que as casas se dirijam a primeira habitação permanente do próprio ou de arrendatários. Quem critica a suposta radicalidade destas propostas não está a ver o filme todo. Em Berlim, há menos de dois anos, 56% dos eleitores votaram a favor num referendo não vinculativo para expropriar milhares de propriedades de grandes empresas imobiliárias.

As pessoas têm direito ao retorno do investimento que fizeram. Não têm direito, quando se vive uma grave crise de habitação e isso já é regra na maioria dos países europeus, a ficar com elas vazias porque não gostam dos limites impostos por políticas públicas. Só uma ideia pervertida de direito de propriedade, transformado em religião, impôs o dogma absurdo de que o mercado não é limitado, contrariado, corrigido, constrangido pelo Estado quando se torna um problema grave na vida da comunidade.

Usar uma casa como ativo financeiro numa cidade consolidada e com espaço limitado não é um direito. Há um bem comum a proteger, por acaso consignado na Constituição, que é garantir um teto a cada um. O Estado tem de fazer o seu papel, coisa que não tem feito desde a erradicação das barracas na viragem do século. Mas os investidores imobiliários não têm direitos irrestritos num mercado condicionado. Até porque esse suposto direito tem impacto em toda a economia.

São cínicos os que choram lágrimas de crocodilo por quem não consegue arrendar ou comprar casa, mas depois recusam qualquer solução que não trate o direito de propriedade como o único a que não se associam deveres e limites. As casas têm uma função social nas cidades. Isso não impede que garantam rendimento, desde que, com isso, os proprietários das casas não se tornem proprietários da cidade. As casas têm donos, as cidades são de todos. E a segunda premissa limita a primeira. É a diferença entre a economia de mercado e a sociedade de mercado.»

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