25.2.23

O que é um ponto sem retorno da história: a invasão da Ucrânia

 


«A um ano da invasão russa da Ucrânia não há maneira de fugir do tema, porque qualquer outra matéria é infinitamente menos importante. A invasão é um daqueles pontos sem retorno que na história do mundo marcam um antes e um depois, e a partir do qual nada é semelhante. Precisamos de pensar diferente, e agir de modo novo, até porque uma das características destes pontos sem retorno é serem sempre uma surpresa.

Os eventos mais importantes da história têm essa característica de não serem previsíveis, por muito que a posteriori se reconstruam sequências de causas que parecem apontar para aí. Na verdade, tanto podiam apontar no sentido do evento-surpresa como de muito outros eventos que não aconteceram. A razão desta surpresa é que há uma dimensão não-humana na história que vem da complexidade do mundo e do nome que têm estes artigos de “ruído do mundo”. Ninguém controla tudo, existe o acaso muito mais poderoso do que a necessidade e a “seta do tempo” na história não é diferente da da física: a desordem aumenta.

A invasão russa da Ucrânia vista a posteriori parece ter algumas “razões”. Os propagandistas pró-Putin repetem sempre essas razões com mais ou menos dolo. Uma é de que a guerra começou em 2014, com o “golpe” da Praça Maidan. Mesmo que se admita toda a descrição dos eventos que aparecem associados a esse “golpe”, só um, normalmente escamoteado por esses propagandistas, pode ser considerado o início da guerra, a anexação do território ucraniano da Crimeia, a que o tenebroso “Ocidente” fez vista grossa. Tudo o resto, incluindo o conteúdo anti-russo do “golpe”, está longe de justificar a invasão. A entrada da Ucrânia na NATO e na UE foi sempre recusada pelo “Ocidente”, mesmo que agora se perceba que a “razão” por que foi a Ucrânia invadida aplicava-se aos países bálticos, onde o sentimento anti-russo é virulento, e onde existe um enclave russo, mas que têm sido defendidos até agora por pertencerem à NATO.

A teorização mais ampla da invasão é uma variante da tese geopolítica de Alesandr Dugin sobre a necessidade de combater a unipolaridade resultante do fim da URSS, que implica a hegemonia de valores que são intrinsecamente anti-russos, os do capitalismo, do liberalismo político e traduzem o poder global americano. A Eurásia levantar-se-ia contra essa hegemonia com a ascensão de uma nova versão da URSS, e da China, criando um mundo multipolar em contrapartida da unipolaridade. As suas teses geopolíticas influenciam quer a extrema-direita, quer os restos do movimento comunista.

Em Portugal, Dugin foi editado muito antes da invasão, por uma pequena editora nacional-socialista – e aqui o nome não é um anátema, é mesmo o que é –, e influencia muitos artigos do Avante! e algumas publicações recentes, como o livro de Albano Nunes, um dos raros dirigentes do PCP com enormes responsabilidades na área internacional que ainda diz claramente que o derrube do capitalismo tem que ser feito “pela força”. Os comunistas, de um modo geral, não citam Dugin directamente, mas é evidente a sua influência geopolítica.

O “Ocidente” não tem as mãos limpas em muitos conflitos, particularmente no conflito israelo-árabe e no apoio político à Arábia Saudita, motivado pela necessidade de controlar as fontes de energia, fizeram asneiras trágicas no Kosovo, na Líbia, no Iraque, no Afeganistão, quase sempre com resultados inversos aos pretendidos (uma das características da frase weberiana do “ruído do mundo”), e na guerra mundial contra o terrorismo do ISIS, mas convém lembrar que o 11 de Setembro foi em Nova Iorque e não em Moscovo. Mas à data da invasão da Ucrânia o “Ocidente” estava em recuo, com a política errática de Trump e o seu isolacionismo anti-NATO, e com a renitência dos aliados europeus em cumprir as suas obrigações em despesas militares. Mais ainda: a opinião pública principalmente na Europa desligara-se do apoio à NATO e estava pouco disposta em gastar mais dinheiro na defesa.

Com a invasão, tudo mudou e esse foi talvez o maior erro de Putin. A maioria dos europeus e não só, as nações mais industrializadas do mundo, com excepção da China, conheceram um significativo crescendo da legitimação da NATO e o seu efeito imediato foi o apoio militar crescente à Ucrânia. A tudo isto acresce o apoio político: em nenhuma circunstância Putin pode ganhar a guerra que iniciou. E é isso que impede a “paz” russa e é a primeira grande consequência do ponto sem retorno da invasão.

O mundo depois da invasão russa mudou completamente, em particular a sensação de risco de guerra que induz tanto o medo como a vontade de resistir. Em Portugal, como em muitos outros países, a condenação da invasão é quase unânime e não é fruto da propaganda “ocidental” nem da desinformação. É isso, por exemplo, que num clima da contestação social impede o PCP de recuperar o que perdeu, porque o apoio, enviesado que seja, à invasão é um forte anátema junto da opinião pública, mesmo para muitos militantes do PCP. Acresce que não há nenhuma fidelidade a “princípios” que justifique a atitude ambígua face à invasão, e isto é um eufemismo, a Rússia de Putin é uma versão autocrática e imperial, eslavófila, e a ideia da Eurásia versus “Ocidente” é muito parecida com a de “espaço vital” hitleriano. Ambas têm em comum uma afirmação de valores entre o paganismo e a ortodoxia, contra a decadência do “Ocidente”, dito de outras maneiras, contra as democracias. A correlação entre a democracia e a decadência tem uma longa e sinistra história.

A partir do momento em que isso tem uma expressão militar agressiva, acabou a complacência. Não é uma guerra semelhante à Guerra Fria, é mesmo uma guerra a sério que tem que ser ganha no plano convencional. Se passar daí, é o Armagedão, mas isso também “eles” sabem.»

.

1 comments:

Niet disse...

Baudrillard nos seus proféticos textos post- Queda do Muro de Berlim sinaliza que a construcäo ideologica e a politica ultrapassaram a partir dessa data mágica e trágica d um modelo de chantagem à História e à Razäo historica a caminho de uma politica da aventura, que viria a facilitar as obsessöes imperiais da Russia de Poutine, jogando na desafectacäo do modelo classico de democracia representativa e na colagem pela nova burocracia russa aos espectros da demagogia populista e iliberal que foram enfraquecendo os polos tradicionais do pluralismo social-democrata e a queda das suas proposicöes farol até à inquietacäo de hoje com a Espanha e a Itálias ameacadas por fortes tensöes de teor neo-fascista.Lavrov conseguiu convencer Poutine
de que a Uniäo Europeia e a Nato näo queriam guerras e Biden podia controlar a ala liberal dos
Republicanos continuando a apoiar a subversäo de Maidan a baixa intensidade, sonhando com con-
quistas a médio prazo que colocassem em xeque a cooperacäo nascente entre Pequim e Moscovo.Isso instigou o aparelho militar russo a tentar a aventura que Baudrillard sinalizou
como uma " tentativa de "disseminacäo transpolitica" que näo despertaria a priori a "indiferenca radical " euro-americana. Niet