«O ano era 1982 e a protagonista Natália Correia. Na Assembleia da República, debatia-se a despenalização do aborto – oito anos depois da Revolução de Abril e uns estonteantes 25 anos antes de a lei vir a tomar forma. João Morgado, então deputado pelo CDS, defendia que “o ato sexual é para ter filhos”. Ora, à data, João Morgado tinha apenas um filho... O resto é poema.
Os últimos meses têm vindo a evidenciar as falhas profundas na aplicação da lei de acesso à Interrupção Voluntária da Gravidez em Portugal, notícias que muito pouco surpreendem as organizações de mulheres. As barreiras são por demais conhecidas, para quem as quiser ver: desde logo, o período de reflexão obrigatório, moralizante e infantilizante, cujos efeitos práticos são frequentemente catastróficos quando potenciados pela incapacidade de resposta de um Serviço Nacional de Saúde constantemente minado pelo negócio privado, estrangulado pelos interesses corporativos e cronicamente subfinanciado.
Só entre 2009 e 2023, sete hospitais deixaram de realizar o procedimento, totalizando 13 num universo de 44 estabelecimentos oficialmente reconhecidos para a realização da IVG. Sobre isto, nem o Governo nem a Direção-Geral da Saúde parecem ter grandes respostas ou avaliações, mas o consenso informal coloca as responsabilidades no apelo à objeção de consciência por parte de médicos e enfermeiros. A tudo isto acresce o encerramento ou condicionamento dos blocos e urgências de ginecologia-obstetrícia, pois é prática hospitalar que os cuidados de saúde primários encaminhem uma mulher que deseje aceder à IVG para estes serviços. Um caldeirão borbulhante de condicionalismos, obstáculos e violências: ao dia de hoje, um em cada três hospitais do SNS não realiza o procedimento. Que direito é esse, afinal, que só funciona em dois terços dos casos? Itália foi condenada por menos.
Portugal não é caso único, ainda que o limite das dez semanas portuguesas se mantenha até hoje como um dos mais curtos e restritivos períodos de acesso ao aborto, nos países em que este é despenalizado. Aliás, o que verificamos ao nível europeu, mais do que uma estagnação, é uma ofensiva coordenada e premeditada contra a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e das raparigas.
As alianças formais estabelecidas em diversas ocasiões entre as diferentes correntes religiosas ao longo dos anos 2000 consolidam a frente anti-escolha, agora reclamada pela extrema-direita, grupos masculinistas e movimentos populistas. No continente, o acesso ao aborto é totalmente ilegal em Malta, Andorra e no Liechtenstein. Em Malta, no verão do ano passado, a turista americana Andrea Prudente sofreu um aborto espontâneo incompleto, durante as férias que desfrutava no país. Os médicos que receberam Andrea no hospital informaram-na de que não havia qualquer hipótese de salvar o bebé e de que a sua vida corria perigo. Ainda assim, como o aborto é proibido em qualquer circunstância e o coração do feto ainda batia, a equipa médica recusou-se a tratá-la. Andrea foi transportada para Espanha e sobreviveu, ao contrário de Mariem, jovem marroquina de 14 anos. Escondida e sozinha na casa do homem que a explorava sexualmente, Mariem perdeu a vida às mãos de um aborto clandestino em Marrocos – outro país onde o acesso ao procedimento é ilegal em quase todas as circunstâncias.
Na Polónia e na Hungria, a influente retórica da Igreja Católica efetivamente barrou o acesso ao procedimento – afinal, não esquecemos que a primeira Via Sacra do Papa Francisco foi dedicada a denunciar o aborto como prática criminosa e assassina. Um pouco por toda a Europa o cenário repete-se, os direitos recuam e as mulheres resistem.
Os obstáculos à autonomia sexual e reprodutiva das mulheres e das raparigas são uma expressão atroz da discriminação com base no sexo, estrutural e institucionalizada, que edifica nações e da qual depende o sistema que nos subjuga. O aborto, tal como a pílula e os demais métodos contracetivos são ameaças titânicas para a sobrevivência da ordem vigente, pois é na autonomia sobre os nossos corpos e as nossas vidas que reside o âmago da nossa emancipação. Assim, permanecemos vigilantes.
A ofensiva está aí, na forma de Morgados capados. A história os recordará como recorda o seu homónimo: uma nota de rodapé nos anais do movimento histórico das mulheres.»
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