25.5.23

A sobrevida dos condes de Ferreira & C.ª

 


«No quadro da exposição Vento (A)mar, os artistas Dori Nigro e Paulo Pinto apresentaram a instalação Adoçar a Alma para o Inferno III que discute o passado escravocrata do conde de Ferreira e que, por isso mesmo, viram a sua exposição censurada pelo Centro Hospitalar do Conde de Ferreira, tutelado pela Santa Casa da Misericórdia do Porto (SCMP). Foi através do dinheiro sujo do tráfico esclavagista, à custa da vida de cerca de 10 mil pessoas negras, que se construiu o Hospital do Conde de Ferreira, 120 escolas primárias e que foram apoiadas inúmeras obras sociais, como as Misericórdias. Não tendo demonstrado em vida ser um homem de “causas sociais”, Joaquim Ferreira dos Santos ter-se-á dedicado às mesmas, postumamente, com o objetivo de limpar o seu nome que, com a abolição, ficara publicamente manchado, como muitos dos que enriqueceram com o tráfico. Nada que trabalhos como Conde de Ferreira & C.ª, de José Capela, já não nos tivessem mostrado há vários anos ou que projetos recentes como Joaquim – O Conde de Ferreira e Seu Legado, de Nuno Coelho, não discutam.

Ora, no que aos dias de hoje diz respeito, é grave que o conde de Ferreira continue a ser apresentado como um benfeitor, glorificado na estatuária, na toponímia e noutros meios de memorialização. É inadmissível que hoje se beneficie desses equipamentos e serviços e se continue a fazer de conta que não se sabe das origens escravocratas da sua “caridade”. E o que é mais grave ainda é que instituições como o referido centro hospitalar se sintam à vontade para censurar trabalhos artísticos que colocam essas continuidades coloniais a nu. Esperemos que a instituição recue e se demarque rapidamente da decisão do seu administrador e do seu diretor clínico – Ângelo Duarte e Nuno Trovão –, peça publicamente desculpa e se posicione do lado certo da história, reabra o acesso à instalação e inscreva de uma vez por todas na sua “memorália” o envolvimento escravocrata do seu patrono. Esperemos também que a Câmara Municipal do Porto, a Direção-Geral das Artes e outras instituições com responsabilidades não fiquem em silêncio. Ou será pedir muito ao país da vocação para o diálogo entre os povos?

Este caso remete-nos para a necessidade de olhar o racismo não só como algo que violenta pessoas racializadas, mas também enquanto relação que beneficia pessoas brancas, no passado e no presente, isto é, enquanto “privilégio branco”. São poucos aqueles que vão rompendo este silêncio. Alguns, corajosamente, expuseram as origens escravocratas da fortuna das suas famílias, como é o caso de Francisco Sousa, que se considera um “afro-beneficiário”, ou de Catarina Demony, jornalista que realizou recentemente o documentário Debaixo do Tapete. Há também quem, como o meu colega e amigo Pedro Varela, investigue as origens escravocratas e coloniais das fortunas de grupos poderosos, como a família Ulrich ou o empresário, apoiante do partido Chega, João Maria Bravo. Aline de Biase Albuquerque, por sua vez, tem estudado o caso de Ângelo Francisco Carneiro, que, de traficante de pessoas escravizadas, passou a visconde de Loures. O seu palacete em Loures é hoje a morada do Grémio Literário.

Este é um debate melindroso para famílias e grupos com responsabilidade no tráfico transatlântico de pessoas escravizadas, não só pela nódoa simbólica, mas por poder vir a “despertar” maior contundência nas reivindicações por reparações materiais. Se há quem se sinta incomodado e critique um suposto desvio “subjetivo” da luta antirracista, eis que tem aqui a oportunidade de mergulhar na “objetividade” das continuidades coloniais em Portugal. Não é?»

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