«Através de uma investigação do Consórcio de Jornalistas, divulgada em vários órgãos de comunicação social, tivemos conhecimento de vários crimes cometidos nas redes sociais por agentes e guardas das forças de segurança. Ao todo, 591 operacionais ainda no ativo terão assumido “comportamentos contrários ao Estado de direito, apelos à violência e à violação de mulheres, comentários racistas, xenófobos, misóginos e homofóbicos, simpatia pelo Chega e por outros movimentos de extrema-direita e saudosismo salazarista.”
A gravidade destes factos levou à abertura de dois inquéritos: um na Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) e um processo-crime aberto pela Procuradoria-Geral da República. Foi anunciado, pelo próprio ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, o carácter prioritário das investigações.
Passados alguns meses, eis que agora foi noticiado o possível arquivamento do processo-crime. As razões invocadas apontam para poder considerar-se como “ação encoberta não-autorizada” a recolha e entrega da prova recolhida pelo Consórcio de Jornalistas e, por isso, essa prova não ser aceite pelo tribunal.
Estamos a falar de mensagens e de publicações nas redes sociais e também na identificação dos polícias que as escreveram e publicaram. Parece estar em causa esquecermos que, pelo menos, 591 polícias cometeram crimes graves, incitaram ao ódio e à discriminação e demonstraram não reunir as condições para usar uma farda policial e serem portadores de armas de fogo.
O sistema judicial não nos deve exigir que façamos de conta que isto não aconteceu. Não vamos ignorar que centenas de polícias – e atenção que as centenas que foram identificados podem ser apenas uma amostra da totalidade – são xenófobos, racistas, homofóbicos e simpatizantes da extrema-direita.
Está em causa a credibilidade das forças de segurança e a credibilidade do próprio sistema judicial que recorrentemente se assume manietado e impedido de fazer o que todos acham, e sentem, que deve ser feito.
Nada impede o Ministério Público de fazer uma investigação como fizeram os jornalistas do consórcio. Existindo uma notícia que aponta para o cometimento de crimes, por parte de polícias, nas redes sociais, pode o Ministério Público investigar, ou seja, requerer às empresas que guardam esses dados que os disponibilizem. Essa informação, mesmo que tenha sido apagada pelos agentes e guardas das forças de segurança, deverá estar ainda armazenada. Uma investigação feita ao abrigo de um inquérito poderá conduzir a resultados muito mais expressivos do que uma investigação jornalística.
Por esta altura, já todos temos o conhecimento de que existe um enorme problema nas polícias. Nem era preciso que fizessem a investigação jornalística. Estamos cientes da infiltração do partido de extrema-direita junto destes operacionais e do crescente racismo e xenofobia. É claro que uma coisa leva à outra e que a adesão ao Chega costuma levar a comportamentos racistas. Quem frequenta redes sociais também está familiarizado com o uso de linguagem violenta e agressiva por parte dos utilizadores que são simpatizantes do Chega. Verificamos que muitos deles são polícias. Nada disto é novidade. O que não sabemos é se alguém vai fazer alguma coisa em relação a isto.
É impossível confiar que polícias racistas e dispostos a cometer crimes estejam aptos a defender a segurança pública. Estão aptos, sim, a colocá-la em risco e acabarão por fazê-lo. Esta situação é uma bomba-relógio. Enquanto ela não explode, o sistema judicial parece determinado a varrer tudo para debaixo do tapete enquanto espera de nós que finjamos que a sala está bem varrida. Claro que, para quem faz parte de minorias, este jogo de fingir é mais difícil de jogar.
O problema não é exclusivamente português, mas esta forma mansa de não o encarar e de esperar que vá correr tudo bem é muito portuguesa. Vimos correr mal no Brasil e estamos a ver em França. Por cá, não correu bem, por exemplo, aos imigrantes de Odemira que foram agredidos e torturados por sete guardas da GNR. Não correu bem na esquadra da PSP de Alfragide e também não correu bem a Cláudia Simões, a mulher racializada que foi violentamente agredida por agentes da PSP, em frente à sua filha de oito anos, na Amadora. Estão, aliás, reunidas as condições para isto correr muito mal.»
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