«A despesa fiscal com os residentes fiscais não habituais (RNH) – a diferença entre os impostos que pagam e os que pagariam, se lhe fossem aplicadas as regras a que estão sujeitos os outros contribuintes – aumentou 55%, entre 2020 e 2022, de 972 para 1508 milhões de euros. A inflação não explica este aumento, até porque a receita de IRS cresceu menos de metade: 21% no mesmo período.
A taxa de 20% aplicada aos rendimentos dos RNH com profissões de alto valor acrescentado, que vão de engenheiros a médicos, passando por uma vasta lista de profissionais liberais, investidores, administradores e gestores, é uma borla fiscal para os mais ricos. O mesmo é verdade para os pensionistas. São os mais ricos que passam a reforma no lugar ao sol do paraíso fiscal português, o que gera o descontentamento nos países de origem que os governos finlandês e sueco (pelo menos) assinalaram, a seu tempo. O Governo finlandês denunciou o tratado de dupla tributação com Portugal em janeiro de 2019. Mesmo depois de a tributação dos pensionistas RNH ter aumentado de zero para 10%, o Governo sueco não ficou satisfeito e revogou, igualmente, o acordo de dupla tributação, a partir de janeiro de 2022.
Na prática, os fiscos sueco e finlandês podem agora tributar as pensões dos seus reformados residentes em Portugal. A decisão unilateral destes dois governos levanta questões relativas a outras fontes de rendimento de cidadãos suecos e finlandeses residentes em Portugal, pelas chatices acrescidas de navegar entre dois regimes fiscais sem o chapéu protetor de um acordo de dupla tributação. Segundo uma notícia do Expresso de março deste ano, o Governo estaria a “envidar esforços para a conclusão das negociações bilaterais em curso”, para obviar às grandes dificuldades vividas pelas empresas com negócios nestes dois países nórdicos. A reputação do Estado português sai beliscada, como é óbvio, o que não deve ajudar ao sucesso dos esforços envidados – alegadamente, uma vez que fontes oficiais das embaixadas da Finlândia e da Suécia citadas na mesma peça afirmam que não há negociações em curso.
Segundo as estatísticas de IRS, a taxa efetiva de tributação (isto é, o que cada contribuinte paga, a dividir pelo seu rendimento bruto) foi, em 2021, de 32% para quem ganhou entre 100 e 250 mil euros de rendimento bruto por ano, e de 45% para quem ganhou mais de 250 mil euros. As pessoas com rendimentos brutos entre 50 e 100 mil euros têm uma taxa efetiva de 23%. Para a taxa efetiva de IRS baixar dos 20%, é preciso ir aos rendimentos brutos entre 40 e 50 mil euros. A comparação com a carga fiscal dos sortudos RNH, pensionistas ou não, é flagrante.
Que tipo de efeitos positivos na nossa economia justificam tamanha injustiça fiscal? Não sabemos, porque quem tem obrigação de nos justificar esta torpeza – o Governo – não justifica; provavelmente porque não sabe. Como explica o relatório New Forms of Tax Competition in the European Union: an Empirical Investigation, publicado em novembro de 2021 pelo European Union Tax Observatory, estes esquemas de discriminação positiva de ricos cresceram como cogumelos na União Europeia na ausência quase total de estudos credíveis acerca dos seus efeitos.
Os artigos académicos existentes contam-me pelos dedos de uma mão e são, mesmo assim, limitados no âmbito da sua análise. Henrik Kleven, Camille Landais e Emmanuel Saez, publicaram dois artigos, em 2013 e 2014, respetivamente, nas prestigiadas revistas científicas American Economic Review e Quarterly Journal of Economics (este último também em co-autoria com Esben Schultz). O primeiro analisa o mercado dos jogadores de futebol em 14 países europeus e o segundo estuda em detalhe o esquema dinamarquês; ambos confirmam que estes esquemas atraem pessoas de rendimentos elevados.
Acontece que para demonstrar que estes benefícios fiscais são uma boa política pública não basta mostrar que eles efetivamente atraem pessoas. Em primeiro lugar, não sabemos que efeitos positivos elas têm na economia que os recebe. No caso português, nem sequer sabemos onde trabalham, se o fazem no contexto de uma empresa, onde a sua experiência profissional pode criar valor para os colegas, que tipo de empresas e de que dimensão, em que sectores – nada! Aliás, não fazemos ideia de quantos efetivamente trabalham. Não sabemos, igualmente, se investiram na economia portuguesa e em que sectores, para além do imobiliário.
O nosso conhecimento dos efeitos negativos é igualmente inexistente. É altamente provável que encareçam as casas, mas nem para isto temos um número que se aproveite. A estatística do preço por metro quadrado (50% superior quando pago por não residentes) não diz diretamente respeito aos residentes não habituais. É bastante provável, também, que encareçam vários serviços não transacionáveis (isto é, com preços determinados pela procura local, como a restauração), o que é uma má notícia para quem os consome e uma ótima notícia para quem os vende. Nada disto está minimamente estudado.
O artigo que analisa a migração de futebolistas mostra que os benefícios fiscais beneficiam a contratação de estrangeiros em detrimento dos residentes e o que estuda o caso dinamarquês estima que o rendimento antes de impostos dos beneficiários é mais baixo do que na ausência do benefício fiscal. Os empregadores estariam, assim, a absorver uma parte do benefício, o que ajudaria a explicar a preferência por não residentes. É outro efeito potencialmente negativo, que não fazemos ideia se existe, nem em que sectores ou profissões. Quero que fique claríssimo que considero que todas estas pessoas são bem-vindas ao nosso país. Aliás, muitas delas são cidadãs europeias e a liberdade de circulação é uma conquista fundamental do mercado único. O que não é justo nem desejável é que não paguem os impostos que correspondem ao seu nível de rendimento.
Até ver, os únicos efeitos conhecidos e indiscutíveis desta borla fiscal são minar a progressividade do imposto sobre o rendimento e gerar negócio para empresas de consultoria e advocacia que ajudam estas pessoas a pagar menos impostos do que qualquer família remediada portuguesa. Parafraseando a ministra das Finanças sueca, em entrevista ao PÚBLICO em 2022, é “interessante” e até “fascinante” observar “como os portugueses aceitam isto”.»
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