18.9.23

O eterno retorno de Cavaco

 


«Quando o ainda relativamente jovem Paulo Portas garantia, como coisa definitiva, que nunca faria política na vida, declarou: “Acho injusto comparar o Dr. Cavaco ao Dr. Salazar. Injusto para o Dr. Salazar em muitas coisas. O Dr. Cavaco não é democrata nem deixa de ser. O Dr. Salazar era voluntariamente antidemocrático. Ou seja, tinha preocupações e pensamento político, o Dr. Cavaco não tem. O Dr. Salazar escrevia admiravelmente e era um cínico como não se repete na vida política portuguesa. E o Dr. Cavaco não escreve nem fala nada de especial, é mesmo muito maçador, e também não é tão cínico. Está longe desse ‘refinement’ no exercício do poder.” Perante a pergunta “então porque ganha eleições?”, o jornalista conservador respondeu: “pensões e autoestradas”.

É uso dizer-se que a esquerda nunca suportou Cavaco Silva por elitismo. A citação recorda de onde vinha esse tipo de desprezo. Justiça seja feita, foi esta direita elitista que exibiu com eficácia o lodaçal em que vivia um primeiro-ministro que se tentava apresentar com as vestes austeras do velho ditador: Dias Loureiro, Duarte Lima, Arlindo Carvalho, Costa Freire, Oliveira Costa... As capacidades de avaliação ética de quem o deveria rodear, uma das qualidades fundamentais para um líder, são mais uma vez evidentes na pessoa que escolheu para apresentar o seu livro, que até em Bruxelas conseguiu ficar mal visto por não ter cumprindo o período de nojo politicamente recomendável para se apresentar ao serviço na Goldman Sachs.

A imagem que Cavaco Silva passava de si nunca bateu certo com as suas companhias. Mas era mais do que isso. A forma como lidou com o escrutínio ao seu próprio comportamento nunca mudou. Em 2011, perante o regresso da acusação de que Oliveira Costa lhe teria vendido, fora de bolsa, ações da SLN a um euro (um mês depois eram vendidas aos clientes do BPN por 2,1) para dois anos depois lhe recomprar a 2,4 euros, garantindo, a si e à sua filha, um lucro de 147,5 mil euros e de 209,4 mil euros, respetivamente, disse: “façam as investigações que quiserem, publiquem tudo, que talvez depois de dia 23 (data das eleições) eu possa ler.” O homem que dizia que uma pensão de nove mil euros mal dava para as despesas estava-se nas tintas.

Quem diz que nunca se viveram tantos “casos e casinhos” como no governo de António Costa, ao ponto disso ser motivo para dissolução do parlamento, deveria ir aos arquivos de “O Independente”. Dará alguma vontade de rir ouvi-lo dar lições de como fazer remodelações, aliás.

Só a meio da sua segunda maioria absoluta é que Cavaco teve de lidar com uma comunicação social mais agressiva. A primeira vez que foi a votos sem que a RTP (que o governo controlava com empenho) estivesse sozinha no terreiro, nas presidenciais de 1996, perdeu. Perante as contrariedades, ou ignorava (orgulhava-se de não ler jornais), ou se enfurecia (ao Tribunal de Contas chamou “força de bloqueio”) ou, quando não havia mais a fazer, recorria à força da bastonada (estudantes, camionistas, trabalhadores, agricultores ou mesmo polícias). Para "arte de governar", já se viram métodos mais sofisticados.

A sobranceria moral de Cavaco, para quem é preciso nascer duas vezes para ser mais honesto do que ele, é tão inexplicável como a sua arrogância intelectual ou, cima de tudo isto, a convicção que pode dar lições de governação a quem o sucedeu. Não vale a pena desenvolver muito. Já me dediquei a isso quando escrevi sobre as suas políticas agrícolas ou de habitação. Ou quando, perante mais um panegírico a si mesmo, disfarçado de critica ao governo, tentei mostrar como Cavaco tortura a realidade e os números para esconder as suas próprias responsabilidades no rumo que o país seguiu.

O impacto negativo que a adesão ao euro teve na nossa economia pode dizer muito sobre o próprio euro. Mas quem acha que esta escolha foi a acertada só pode concluir que Cavaco Silva, que ocupou o poder nos primeiros dez anos de integração europeia e em boa parte da caminhada para a moeda única, não aproveitou os enormes recursos que teve para precaver o que aí vinha. Quem se lembra desse tempo sabe bem que não o fez, aliás.

A sua sorte foi, depois de ter ido fazer a rodagem do carro até à Figueira da Foz (outro mito que o mais profissional dos “não políticos” inventou sobre si mesmo), ter caído no poder quando o país foi inundado de dinheiro europeu, que gastou sem os constrangimentos atuais. Cavaco Silva não faz a mais pálida ideia do que seja governar com os limites hoje impostos e, por isso, nunca olhou a gastos quando era preciso vencer eleições. Usando, com muito mais margem, os mesmíssimos artifícios eleitoralistas que são apontados a Costa. Cavaco nunca foi o governante rigoroso e austero que se apresenta. Foi o oposto.

É por isso que não li ou vou ler as lições do professor. Já chega. Uma coisa é ler um artigo, outra é o investimento de tempo para ler um livro de Cavaco. Nisto, concordo com Portas: Cavaco é muito maçador. E não lhe reconheço, na sua experiência governativa, autoridade política e moral para ensinar outros a governar com rigor estratégico para preparar o país para o futuro.

Interessam-me, neste momento, apenas as consequências destas recorrentes investidas cavaquistas.

Dois homens verdadeiramente sérios nunca se entregaram a este eterno regresso: Ramalho Eanes e Jorge Sampaio. Mário Soares sim. Uns dirão que é o mesmo ímpeto de cidadania, outros que é a mesma tola vaidade. Mas há uma grande diferença entre os dois: como nunca antes fingira que não era político, Soares nunca se colocou no lugar intocável de oráculo da Nação. Arriscou, já com proveta idade e quando tinha um lugar no pedestal reservado ao “fundador da democracia”, uma derrota eleitoral em Presidenciais.

A prolixa produção autoelogiosa de Cavaco Silva nem sequer tem como objetivo criar problemas ao governo. Não há figura que una mais a esquerda de forma quase pavloviana. Estes episódios são balões de oxigénio para António Costa. A motivação é sempre a mesma e tem menos “refinement” político (permitam-me continuar a usar Portas como bengala) do que se pensa. Cavaco só tem um desígnio político: alimentar o seu insaciável ego. Sempre foi isto. Falar de si, elogiar-se e dar a si próprio um determinado lugar na história.

Estas aparições recorrentes, que se transformam em factos políticos graças ao vazio da oposição, são um problema para a direita. Fragmentada, longe do poder há demasiado tempo e condicionada por um racista ambicioso, está encalhada em personagens do passado – Pedro Passos Coelho e Cavaco Silva. Mas Passos ainda pode fazer alguma coisa por ela, regressando para a desforra. Uniria a direita e dividiria profundamente o país. Já Cavaco Silva faz o que sempre fez: esmagar, com a sua douta banalidade, quem à sua volta queira brilhar. E sublinhar que o PSD, centrado nas protagonistas do passado, vive numa confrangedora ausência de futuro.»

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1 comments:

António Alves Barros Lopes disse...

DESTACO
"O impacto negativo que a adesão ao euro teve na nossa economia pode dizer muito sobre o próprio euro. Mas quem acha que esta escolha foi a acertada só pode concluir que Cavaco Silva, que ocupou o poder nos primeiros dez anos de integração europeia e em boa parte da caminhada para a moeda única, não aproveitou os enormes recursos que teve para precaver o que aí vinha. Quem se lembra desse tempo sabe bem que não o fez, aliás."

Cavaco é uma fraude Ver https://lopesdareosa.blogspot.com/2010/10/recandidaturas.html