«Na crónica de 13 de outubro lembrei a posição das Nações Unidas sobre o terrorismo. Em resumo, escrevi que o terrorismo e todas as ações criminosas desse tipo, destinadas a provocar vítimas, destruição e o pânico geral, não podem ser justificadas ou minimizadas por considerações de ordem política, filosófica, ideológica, racial, étnica ou religiosa. Devem ser sempre condenadas de modo inequívoco. Acrescentaria agora, depois da comunicação que António Guterres fez ao Conselho de Segurança da ONU, que a análise objetiva e fatual do contexto em que esses atos ocorrem não pode ser vista como uma tentativa de desvalorização dos crimes praticados. Reagir como Israel o fez é um abuso inaceitável e uma distração política. Essa análise é imprescindível para que se possa encontrar as vias de solução do problema.
Nessa crónica, e em várias intervenções televisivas, também recordei que a resposta dos Estados, mesmo quando se trate de uma crise de grandes proporções, deve ser adequada e balizada por razões políticas e morais, e igualmente pelo respeito pelas convenções internacionais, os direitos humanos e a lei e princípios humanitários. Tudo isso tem impacto sobre a imagem dos dirigentes do país e sobre a legitimidade das medidas tomadas. Tem igualmente uma forte dimensão humana: hoje não se pode aceitar que à violência sanguinária de alguns se responda com uma violência institucional sem limites. Uma reação desmesurada levará sempre a que saia o tiro pela culatra. O Presidente Macron acaba de reconhecer esse risco, após a sua visita à região. O Presidente Biden, quando em Israel, disse-o de uma maneira oblíqua, mas para bom entendedor, meias-palavras bastam. É preciso, no entanto, que se esteja pronto para ouvir a voz da prudência.
O terrorismo combate-se derrotando os seus agentes, mas não só. Os militares e os polícias, por mais enérgicos e equipados que estejam, não constituem uma solução suficiente. É preciso atacar as causas profundas, denunciar e isolar os Estados que apoiam ou promovem o terror, reforçar a segurança interna e a cooperação entre os diferentes serviços de informação dos países aliados.
Este último ponto parece evidente. Mas há pouco mais de uma semana um tunisino matou dois cidadãos suecos em Bruxelas, num ato obviamente terrorista. Andava à solta na Bélgica, apesar da polícia tunisina ter informado a sua congénere belga sobre a sua perigosidade e pedido a sua captura e extradição.
Escrevo isto a pensar na reação às palavras de Guterres por parte do ministro dos Negócios Estrangeiros e de outros diplomatas israelitas. Repito que considero essa reação inadmissível. O Secretário-Geral expressou um repúdio completo pelos massacres cometidos pelo Hamas, como aliás já o havia feito de forma inequívoca e reiterada. Por outro lado, exerceu o seu dever político e moral, que lhe é reconhecido pelo Artigo 99 da Carta das Nações Unidas, ao chamar a atenção do Conselho de Segurança para as distintas dimensões do problema, incluindo o que considera ser violações da lei internacional. Mostrou independência e equilíbrio perante uma crise extraordinariamente complexa. É isso que se espera das Nações Unidas, é a sua mais-valia, como tive várias vezes que lembrar aos Estados membros, incluindo no Conselho de Segurança.
Voltando à Carta, o Artigo 100 requer que os Estados respeitem o Secretário-Geral e os funcionários das Nações Unidas. Dizer que se "vai dar uma lição" à ONU é uma declaração estrambólica e intemperada, única na história da organização. Também não é admissível, de acordo com a Convenção sobre os Privilégios e as Imunidades da ONU, recusar vistos de entrada aos funcionários, quando a deslocação for de natureza oficial. Por isso, o passaporte dos funcionários tem a designação de Laissez-passer. A única exceção para negar um visto diz respeito à segurança nacional. Nesse caso, o país tem a obrigação de informar o Secretário-Geral, invocando essa razão.
No meio disto tudo, o importante é não perder de vista que a situação naquela parte do Médio Oriente está numa espiral muito perigosa. Cabe a todos os protagonistas compreender a gravidade da situação, os riscos inerentes e procurar as soluções que respondam às preocupações dos dois povos, israelitas e palestinianos. É aí que a atenção do Conselho de Segurança se deve focar. Mas o Conselho, e não o Secretário-Geral, está num impasse muito intrincado.»
Ex-secretário-geral-adjunto da ONU
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