24.1.24

O exemplo alemão

 


«Ninguém terá ficado indiferente perante as imagens das manifestações gigantescas nas ruas das principais cidades alemãs, no fim-de-semana passado, em protesto contra um partido de extrema-direita que cada vez mais mostra a sua verdadeira face – racista, violenta, nacionalista.

O chanceler Scholz e alguns dos seus ministros encabeçaram a manifestação de Berlim. Estiveram presentes representações religiosas, treinadores da Bundesliga, gente das mais diversas proveniências.

O partido em causa, a AfD (Alternativa para a Alemanha), tem uma significativa representação parlamentar – 78 lugares em 736. Ficou em quinto lugar nas últimas eleições. As sondagens colocam-na agora em segundo lugar (com 22%) a nível nacional, abaixo da CDU/CSU, mas acima dos três partidos da coligação governamental liderada pelo SPD de Olaf Scholz, que inclui os Verdes e os liberais do FDP. Há eleições neste ano em três Lander do lado oriental do país – Turíngia, Brandeburgo e Saxónia – e a AfD pode vencer em todos.

Como já devem ter lido aqui no PÚBLICO, houve uma reunião da AfD com um grupo onde proliferam neonazis e onde foi debatido um plano apresentado por um conhecido extremista austríaco, Martin Sellner, que visava a deportação em massa de estrangeiros e de alemães "não integrados".

O passado da Alemanha não está esquecido, embora alguns dirigentes da AfD digam que já chega de estar sempre a falar do Holocausto. A ministra do Interior, Nancy Faeser, não permitiu o esquecimento, lembrando que esta reunião teve lugar em Potsdam, não muito longe da "horrível conferência de Wannsee", onde os nazis planificaram a "solução final" para o extermínio de todos os judeus na Alemanha e na Europa.

Um grito de alerta

A divulgação deste encontro foi um grito de alerta. Há hoje na Alemanha um debate sobre se este partido deve ou não ser ilegalizado. A maioria das opiniões inclina-se para que não – seria vitimizá-lo, quando o que há a fazer é combatê-lo politicamente.

A AfD cresce, sobretudo, nos Lander de Leste, aproveitando algum ressentimento que ainda existe entre os cidadãos da antiga RDA em relação aos privilégios e à maneira de ser e de viver dos alemães ocidentais.

Trinta anos depois da reunificação, as diferenças ainda persistem, talvez mais nas mentalidades, mas também nos níveis de vida. Escreve o Monde que tem crescido nos últimos meses "um sentimento de insatisfação que resulta de uma nova vaga de imigrantes, mas também das permanentes querelas entre os três partidos da coligação de Governo, tendo uma recessão económica e uma inflação elevada como pano de fundo". As razões económicas ajudam, mas não explicam tudo.

A imigração é hoje o problema que mais preocupa os alemães, conforme revelam quase todas as sondagens.

"Dexit"?

Entretanto, a radicalização dos dirigentes da AfD tem sido evidente também na questão europeia. Alice Weidel, a líder do partido, disse numa entrevista ao Financial Times que vai fazer campanha a favor de um referendo idêntico ao que levou ao "Brexit", considerando a saída do Reino Unido da União Europeia um exemplo: "É um modelo para a Alemanha que seja possível tomar uma decisão soberana" como a que os britânicos tomaram. Na mesma entrevista, realizada já durante os protestos em massa, Weidel negou a interpretação dada à reunião, dizendo que o seu partido só pretende aplicar a lei de repatriamento das pessoas a quem foi negado o direito de ficar na Alemanha.

É certamente porque a AfD se sente cada vez mais forte que não hesita em defender um "Dexit". A organização nasceu em 2013, na sequência da crise financeira e da crise do euro, precisamente para condenar a moeda única europeia.

A Alemanha atravessa uma crise complexa, que se reflecte na sua economia, mas que reflecte também as profundas transformações internacionais a que assistimos, incluindo na Europa, com a invasão russa da Ucrânia. Descobriu que as suas relações com o mundo não se limitam à economia. Com a Rússia, aprendeu da pior maneira. Com a China, está a aprender agora. A sua poderosa indústria exportadora contava com a energia barata russa e com o mercado chinês, incluindo para a importação de bens intermédios, que alimentavam as suas fábricas. A transição energética obriga a sua poderosa indústria automóvel a adaptar-se muito rapidamente aos veículos eléctricos. É um dos países mais atrasados da Europa na transformação digital. Do ponto de vista europeu, também podemos dizer que o seu mais potente motor económico ainda não está gripado, mas esta com sérios problemas de manutenção.

E nós?

Caro leitor, cara leitora, esta breve reflexão sobre a Alemanha faz-me pensar também no nosso país.

É certo que passámos ao lado da II Guerra, com uma "neutralidade" sui generis, que permitiu ao regime fascista fornecer bens indispensáveis para o esforço militar nazi e, ao mesmo tempo, não ter outro remédio se não ceder as Lajes aos Aliados. É certo que vivemos quase 50 anos num regime opressor que deixou uma herança cultural e mental mais profunda do que, por vezes, queremos admitir, de apatia e de um certo "adormecimento" ou resignação. Para já não falar do gigantesco défice de educação.

Seríamos capazes – seremos capazes – de encher as ruas das nossas cidades em protesto contra algumas das propostas do Chega em domínios que são, para nós, atentados aos valores civilizacionais indiscutíveis que defendemos? Não sei. Mas o que sei é que o combate ao Chega não se faz apenas discutindo até à saciedade se o PSD ou, agora, a AD vai contar com os deputados do Chega para formar Governo depois das eleições, caso as vençam ou haja uma maioria de direita, incluindo a extrema. Também se combate na rua, no Parlamento, nas autarquias, nas associações de estudantes, nas universidades. Debatendo e protestando. Lembrando aos mais jovens a História europeia da primeira metade do século XX e impedindo que se crie a ideia, profundamente errada, de que o longo período fascista em Portugal já não interessa nada.

Temos eleições nacionais e europeias em Março e em Junho. Não podemos render-nos à evidência de que o Chega vai crescer. Temos, como cidadãos, de o combater.»

Teresa de Sousa
Newsletter do Público, 23.01.2024 (excerto)
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