«Um trabalho da Joana Gorjão Henriques da semana passada, aqui no PÚBLICO, dava conta das dificuldades das associações de apoio a imigrantes, constrangidas a dispensar funcionários por falta de financiamento. As organizações eram financiadas por fundos europeus, cujo prazo de execução terminou a 31 de dezembro e o Governo não assegurou continuidade do financiamento. Ou melhor: assegurou, com a abertura de um novo concurso para financiamento a partir de 1 de janeiro... só que esse concurso ainda não tem resultados.
Uma responsável citada explica que, “com base na experiência anterior, até os fundos estarem disponíveis para as associações após a divulgação dos resultados pode demorar no mínimo dois meses, ou seja, seriam quase cinco meses sem financiamento”. O Governo promete retroativos, mas nem todas as associações conseguem suportar os encargos neste intervalo de tempo. O resultado é a limitação dos meios disponíveis no terreno para o apoio essencial aos imigrantes em Portugal. A começar pelo “mar de burocracia” em que mergulham, como denunciou recentemente o Serviço Jesuíta dos Refugiados, que só conseguem navegar com a ajuda destas associações.
Recordo também os armazéns insalubres, como o da Lourinhã e os algarvios, que servem de residência a imigrantes como Laxman Shrestsha, professor nepalês a residir no Algarve. Em abril do ano passado, Laxman explicava ao PÚBLICO: "Sonhava com a Europa como o lugar onde a minha vida ia mudar [, mas] nem no Nepal passamos por estas coisas.” Viver num armazém em cujas traseiras se alinham “seis sanitas, com paredes de chapa castanha da ferrugem, (...) em cubículos sem portas, ou portas que não fecham” não configura tráfico de pessoas; para isso, é preciso que ocorram situações mais graves, como confisco de documentos. Isto cria um vazio: as câmaras alegadamente não têm capacidade e queixam-se da inação da Autoridade Tributária e do Governo central. Mais uma excelente razão para financiar as organizações de proximidade.
Relatos de situações de tráfico também não faltam. No final de novembro, foram detidas 28 pessoas devido à exploração de pelo menos 100 imigrantes. Em junho e dezembro, operações da Polícia Marítima identificaram um total de 750 imigrantes na apanha ilegal de bivalves. Recuando ao final de 2022, encontramos a notícia da operação da PJ que resgatou meio milhar de imigrantes em condições de semiescravidão: “Mais de 70 pessoas a dormir num alojamento com uma única casa de banho, colchões nas próprias casas de banho, amontoados em várias divisões (...) a ganhar entre 5 e 10 euros por semana, forçadas a mendigar para conseguirem sobreviver.” Convém recordar que os imigrantes ilegais não costumam ligar às autoridades a pedir ajuda. Outra excelente razão para financiar as organizações que os apoiam.
A falta de meios das organizações causa-me bastante perplexidade porque a dignidade dos imigrantes devia ser uma prioridade absoluta das nossas políticas públicas, por várias razões. A primeira é de ordem ética perante seres humanos em situação de grande precariedade financeira, emocional e legal.
A segunda razão é pragmática. Os imigrantes trazem-nos aumento da população num país em declínio populacional, rejuvenescimento num país a envelhecer, resolvem problemas de escassez de mão de obra em alguns setores e, sem surpresa, oferecem uma contribuição positiva para a segurança social. Segundo o último relatório do Observatório das Migrações (OM), publicado em dezembro, representam 7,5% das pessoas que residem em Portugal e desde 2019 os saldos migratórios positivos mais do que compensam os saldos naturais negativos. As mulheres estrangeiras foram responsáveis por 17% dos nascimentos, pelo que a imigração também contribui para um saldo natural menos negativo.
Os imigrantes já representam 13,5% dos contribuintes para a segurança social e as suas contribuições chegaram a 1861 milhões de euros. Como os imigrantes reformados (também os há, sobretudo da UE) não recebem pensões portuguesas e há uma maioria em idade ativa, custam pouco dinheiro à segurança social, pelo que deram lucro. Este resultado muito positivo é igualmente reflexo da taxa de atividade dos estrangeiros em Portugal, que é superior à dos nacionais.
Os trabalhadores estrangeiros são essenciais para alguns setores de atividade, que “entrariam em colapso” sem eles, ainda segundo o relatório do OM. Quase um terço tem ocupações não qualificadas e outros 20% são trabalhadores da indústria ou construção, artífices, operadores de máquinas e trabalhadores de montagem. Ou seja, os imigrantes estão expostos a maior precariedade, relações laborais mais instáveis, salários mais baixos e maior sinistralidade em setores como a construção civil, hotelaria e restauração, serviço doméstico: outra ótima razão para deixar as organizações de apoio continuarem o seu trabalho.
A terceira razão é de ordem política. A moção temática “Portugal precisa de mais portugueses”, apresentada na convenção nacional do Chega, agita todas as bandeiras típicas do discurso xenófobo e anti-imigração. Está lá a suposta destruição da “nossa” cultura: “Basta sair à rua em qualquer vila e cidade do nosso Portugal para vermos que a nossa população está a sofrer uma mudança nas suas características fundamentais: cultura, religião, idioma, costumes.” Está lá o colapso dos serviços sociais (quando sabemos que, pelo contrário, os imigrantes são contribuintes líquidos!): “Basta ver a crise na habitação, o colapso do SNS, o caos nas escolas com turmas cada vez menos portuguesas e a falta de vagas nas creches.” Está lá o crime: “Importar gente de qualquer lugar para vir trabalhar ao preço da chuva – se tiverem sorte. Se não tiverem, depressa cairão na mendicidade, no mundo das drogas, na pequena criminalidade.” E, claro, não podia faltar a grande substituição: “Basta ir a qualquer maternidade e ver esse 'novo Portugal' que nos estão a impor – na Maternidade Alfredo da Costa, um em cada três bebés já é filho de mãe estrangeira (...) chamam-se Aariz, Snyam e Thomas os primeiros bebés do ano.”
Quando escolhemos conviver coletivamente com as condições desumanas em que alguns imigrantes vivem entre nós, estamos a contribuir para o terreno fértil em que crescem as narrativas de quem os pretende desumanizar. Não é com apoios retroativos que vamos lá.»
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