«Na primeira metade da minha carreira, aí até 2010, 2012, mais coisa menos coisa, a Visão tinha uma redação grande, mas que ainda assim parecia pequena para os níveis de exigência de então. Um artigo de abertura (6 a 10 páginas) era obrigatoriamente uma reportagem com vários casos pessoais, muitas vezes espalhados pelo País (chegávamos a fazer centenas de quilómetros para ir buscar uma história, porque Portugal não é só Lisboa e se o tema era nacional, tinha de ser nacional). Davam-nos pelo menos duas semanas para fazer o trabalho, porque, diziam-nos os mais velhos, a Visão não é um pasquim qualquer, cada prosa tem de ser escrita como se fosse uma peça de literatura. E a exigência não era só no nível de escrita: havia uma série de apertadas regras jornalísticas e do livro de estilo a seguir (“Tens de pedir sempre o nome e apelido, idade e profissão”, e ainda hoje tenho suores frios com as vezes que me esqueci de pedir a idade). O texto passava depois por um editor (que muitas vezes o mandava para trás para ser reescrito; sim, havia tempo para isso), depois um desk e finalmente um revisor. No caso de ser capa, ia ainda ao diretor.
E então veio o declínio. Com a oferta de notícias na internet, a revista (tal como os jornais) foi perdendo leitores. Os tempos de 65 mil revistas vendidas em banca, mais umas 30 ou 35 mil em assinaturas, rapidamente passaram a “É espetacular se vendermos 20 mil”. A publicidade passou a valer cada vez menos, os anunciantes fugiam para as redes sociais. Não havia dinheiro para contratar sangue novo, essencial para manter uma redação viva e estimulante, nem para aumentar os melhores jornalistas, que foram saindo na busca legítima de melhores condições, muitos deles abandonando o jornalismo. A redação envelheceu e emagreceu, ao mesmo tempo que o trabalho se multiplicou. Somos hoje um terço dos jornalistas que éramos e, em cima disso, passámos a ter de trabalhar muito, muito mais, porque é preciso “alimentar o site”. Deixámos de escrever e passámos a produzir. Já não há desks. Não há gente nem tempo para ler e editar os artigos publicados no site. Somos poucos e é preciso gerar volume e tráfego e há que trabalhar para o algoritmo, para nos mantermos relevantes no espaço noticioso. Quê, duas semanas para fazer uma reportagem?! Mas julgas que vai sair daí o Pulitzer, é? E o que vais dizer aos teus colegas do lado, que vão ter de trabalhar a dobrar para compensar o teu engonhar?
Não, já não me preocupo em pedir o nome e apelido, idade e profissão de cada um, porque estou mais preocupado em despachar o artigo e tenho mais dois para fazer ainda hoje. Não, já não percorro centenas de quilómetros para falar com “aquela” pessoa, apesar de o tema ser nacional. Não, já não vou ao estrangeiro fazer reportagem, porque não há dinheiro para viagens e hotéis. Não, nem sempre consigo cruzar a informação com todas as fontes que quero, porque há que dar a notícia já, antes que outro a dê, e as preciosas horas que passámos nisto vão por água abaixo. Não, não há a mínima perspetiva de ser aumentado, por mais que me esforce.
Estamos todos presos neste ciclo de decadência contínua, em que o rigor e a qualidade se perdem por falta de tempo, e a falta de rigor e qualidade levam à perda de leitores, e a perda de leitores leva à perda de receitas, e a perda de receitas leva à perda e apatia de jornalistas, e a perda e apatia de jornalistas leva à perda de rigor e qualidade.
Caros leitores, isto não é uma justificação, mas apenas uma explicação. Vocês merecem mais. Nós sabemos isso. E fazemos o melhor que podemos. Não está fácil. Mas vamos continuar a lutar. O jornalismo é das profissões mais nobres do mundo. Acredito tanto nisso hoje como em 1999, quando entrei, fascinado até ao arrepio, pela primeira vez na Visão. Mais, até. Não é um trabalho, é serviço, é amor, é paixão, é a nossa vida.
Acompanhem-nos nesta luta. Ajudem-nos a fazer melhor. Continuamos a ser jornalistas até à medula. Não vamos desistir do jornalismo. Não desistam de nós.»
Luís Ribeiro no Facebook
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