11.1.24

A extrema-direita já não é o que era?

 


«Há alguns anos, quando falava do meu receio em relação ao crescimento da extrema-direita recebia muitas vezes comentários dubitativos ou mesmo jocosos. Em França, havia a ideia de que o cordão sanitário funcionaria para sempre, em Portugal havia a convicção, que se veio a revelar ser um mito, de que a nossa Constituição nos preservaria da extrema-direita. Ouvi muitas vezes “isso nunca vai acontecer”, “é um fenómeno residual”, “estás a exagerar”. Nisto preferia sinceramente não ter tido razão.

Em Portugal, passámos de pequenos partidos anónimos com, de facto, uma expressão eleitoral residual a um partido que disputa agora o lugar de terceira força política, com poder para influenciar a constituição de governos e agendas mediáticas. Em França, a extrema-direita é a segunda força (a primeira nas eleições europeias), já tendo amplamente vencido a luta das ideias, conseguindo também impor a sua agenda. A direita adota agora sem qualquer embaraço o mesmo discurso e o Governo de centro-direita vota leis, como a nova lei de imigração, que seriam impensáveis há muito pouco tempo. Ainda ressoa o momento televisivo de 2021 em que Gérald Darmanin, ministro do Interior, diz num debate com a líder da extrema-direita, Marine Le Pen, que a acha demasiado “mole”.

Em entrevista à Lusa, o porta-voz do grupo de reflexão Friends of Europe, Dharmendra Kanani, previne: "Hoje na Europa a extrema-direita está a ganhar uma tração e a conseguir percentagens de votos que há dez anos seriam impensáveis. O centro, o centro-esquerda e os moderados têm de se lembrar do que aconteceu há 100 anos quando muitos ficaram simplesmente a olhar." Em várias intervenções públicas, o filósofo americano, especialista do fascismo, Jason Stanley tem vindo a alertar para o facto de o problema atual não ser a polarização política, mas o facto de haver um polo que se está a mover para a extrema-direita.

Mas não devemos dar todo o crédito do sucesso da extrema-direita à direita, ela tem mérito próprio. Tem conseguido, de forma sistemática, fazer um trabalho de desdiabolização eficaz. Nestes últimos meses, no contexto da guerra genocidária de Israel contra a Palestina, conseguiu até deitar abaixo aquele que era talvez um dos últimos obstáculos para a sua ascensão ao poder efetivo: as suas ligações estreitas com o antissemitismo. Pela primeira vez, em França, a extrema-direita foi bem acolhida numa manifestação contra o antissemitismo, fazendo de conta já não ser o que era. Escondendo no armário quem são os fundadores do partido, quem são os ideólogos, quem são os financiadores, quem faz parte das equipas de segurança, quem são os seus porta-vozes e amplificadores da ideologia informais nas redes sociais, quem constitui uma parte dos seus eleitores, etc. Na extrema-direita portuguesa, também se tenta esconder ligações com figuras do movimento neonazi.

A extrema-direita continua a ser o que era, a ponto de utilizar, como explica o sociólogo Ugo Palheta, muitos dos mesmos mecanismos de retórica racista que já havia utilizado contra judeus para atacar muçulmanos, qualificando-os de eternos estrangeiros à nação, suspeitos de quererem destruir a nossa civilização, de se infiltrarem nas esferas de poder, de haver conluio com a esquerda (ex: “judeus-bolcheviques”, “islamo-esquerdistas”). Nada como encontrar inimigos comuns para fazer as pazes em relação a ódios antigos. Esta súbita defesa da extrema-direita de uma das vertentes da luta global antirracista é puramente oportunista. E assim consegue “matar vários coelhos com uma só cajadada”. Consegue normalizar-se, diabolizar adversários políticos (reduzindo a crítica a Israel e a defesa da Palestina a uma posição antissemita), atacar minorias, defender ideias como a supremacia étnica, racial ou religiosa, a legitimidade colonial, e até fazer a amálgama entre ser judeu e ser israelita reforçando uma das suas clássicas ideias antissemitas, a de que judeus serão sempre estrangeiros à nação. A extrema-direita tem nova maquilhagem, mas ainda é o que era.»

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