21.2.24

Cinco momentos que marcam a derrota de Montenegro

 


«Pedro Nuno Santos vinha de uma série de debates em que esteve aquém das expetativas, Luís Montenegro vinha de uma série de debates em que esteve além das expetativas. Por isso, para o debate de segunda-feira as posições tinham-se invertido: esperava-se mais de Montenegro. Só que o que aconteceu ali foi mais do que a superação ou frustração de expetativas.

Num debate onde, estranhamente, os moderadores não trouxeram o tema da justiça quando um juiz de instrução torpedeou mais um pouco o processo que nos trouxe a estas eleições, cada candidato esteve melhor nuns temas do que noutros, até porque um deles está num lugar que só foi ocupado por Ferro Rodrigues e Fernando Nogueira – o de ser incumbente sem o ser. Havia pastas onde empatar seria o melhor que Pedro Nuno Santos poderia conseguir. Perder claramente, perdeu no debate sobre o Serviço Nacional de Saúde. Pelo contrário, venceu claramente no terreno da AD – o choque fiscal. Quando falo de vitória e derrota não estou a falar de performance. Estou a falar de argumentos substantivos.

Mas há cinco momentos que explicam porque o debate de ontem esteve longe de ser equilibrado. Pode tê-lo sindo quando seguiu a velocidade de cruzeiro. Mas em tudo o que deixou marca política, foi Pedro Nuno Santos que ficou a ganhar e Luís Montenegro a perder. E em nenhum dos casos estiveram em causa truques, interrupções ou rasteiras. Mas traços políticos. Não foi a forma, foi o conteúdo.

1. UMA QUESTÃO DE SENTIDO DE ESTADO

O debate começa com um caso que não estava previsto: a deslocação de uma manifestação de polícias marcada para o Terreiro do Paço, local comunicado às autoridades, para o Capitólio, no Parque Mayer, local para onde nunca seria autorizada. Os polícias bloquearam e cercam o acesso ao espaço do debate. Mas muito mais importante: violaram a lei, de que são agentes. Perante isto, é inacreditável que haja quem trate aquela manifestação como se fosse de qualquer outro grupo profissional.

Não houve assessores, conselheiros ou “media training” para preparar a reação àquele momento. Houve instinto político (no que a expressão tem de mais relevante) de cada um dos candidatos. E, ao contrário de Luís Montenegro, Pedro Nuno Santos percebeu a gravidade do que estava a acontecer e que quem se candidata a primeiro-ministro candidata-se a representar a autoridade do Estado. Sobretudo perante os que, tendo o dever de exercer essa autoridade nas ruas, a subvertam. E disse: “Não se negoceia sob coação. Disponibilidade total para chegarmos a acordo. Mas sempre com respeito pela ordem”.

Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro não se candidatam a secretários de Estado. Devem estar tecnicamente preparados, mas, para quem percebe que a democracia não se substitui pela tecnocracia (que, de qualquer das formas, nenhum deles representa), o mais relevante é a preparação política. E se há momento em que essa preparação política foi testada, na simulação do que pode acontecer a um primeiro-ministro que tem de agir perante pressão em casos concretos e inesperados, foi aquele.

Pedro Nuno Santos não se limitou a falar de forma mais clara a um eleitorado institucionalista – que a direita está a abandonar num crescente abandalhamento do seu discurso –, esteve, logo no início do debate, à altura do que se espera de quem tenciona dirigir o Estado. Luís Montenegro fez o oposto do que fizera, de forma preparada, com Ventura, e preferiu piscar o olho aos votos dos polícias a mostrar que tipo de primeiro-ministro poderia vir a ser.

2. UMA QUESTÃO DE CLAREZA

Há semanas que se exige que Pedro Nuno Santos clarifique se o PS viabiliza um governo minoritário da AD, caso esta vença. Do meu lado, tenho sido claro no que considero ser mau para a democracia: que PS e PSD desistam de liderar a oposição, entregando essa função ao Chega e restringindo a escolha política entre os democratas e os seus inimigos. Voltarei ao tema dos blocos centrais informais brevemente. Mas à pergunta, Pedro Nuno Santos foi de uma clareza cirúrgica. Que não inviabiliza a tomada de posse de um governo de direita se não houver outra alternativa. Que não criará um impasse num momento em que o parlamento não pode ser dissolvido. E que, chegado o momento do Orçamento de Estado, não contem com ele para entregar a oposição ao Chega e servir para apoiar um rumo de que discorda frontalmente.

Luís Montenegro tinha prometido, nos últimos dias, voltar ao tema da governabilidade. Preparava-se para responsabilizar o PS por alianças da direita com o Chega. Mas, como se viu, não se preparava para clarificar, ele próprio, a sua posição sobre um governo no PS, alimentando um desequilíbrio de exigência que a comunicação social tem aceitado. A pergunta que tem de ser feita a Montenegro é simples: o que nos está a esconder? Uma pergunta especialmente relevante quando temos o líder do Chega a dizer que tem a garantia de gente no PSD de que, com ou sem Montenegro, a direita governará. Alguma coisa explicará estes insistentes silêncios de Montenegro e os recuos de Nuno Melo e Pedro Duarte. Supeito que também regressarei a este tema.

3. UMA QUESTÃO DE PREPARAÇÃO

Usando os episódios que levaram à demissão de Pedro Nuno Santos, a direita tem baseado a sua campanha na ideia de que o candidato do PS é impreparado. Não foi isso que se notou neste debate, mas nem sequer é esse o meu argumento, que seria sempre de uma enorme subjetividade. Até porque a exibição da preparação, em debates, consegue-se direcionando a discussão para o assunto para o qual os candidatos se sentem mais à vontade. Só que houve um deslize muito preocupante, tendo em conta o que estava em discussão.

O momento resultou de uma intervenção de Pedro Nuno Santos, quanto este disse que, na proposta fiscal da AD, a perda acumulada seria, numa legislatura, de 16,5 mil milhões de euros (acumulando todos os cortes até chegar à velocidade de cruzeiro, em 2027). Luís Montenegro negou com veemência, dizendo que seria de cinco mil milhões (noutro momento disse que seria de três), porque é dinheiro que só se perde de uma vez.

Se olharmos para os polígrafos, já todos os candidatos mentiram ou se enganaram em praticamente todos os debates. Mas o que estava em causa não era um tema qualquer. É a bala de prata da AD para a economia, na qual se baseia boa parte do seu programa, que aumenta a despesa. Não ter consciência, nem sequer aproximada, da dimensão do rombo nas contas públicas e da perenidade desse rombo, achando que ele só se sente uma vez, é dar um tiro no seu próprio porta-aviões. Não percebo como pode este episódio ser tratado como mera distração, quando, ainda por cima, houve insistência, dizendo que o efeito da descida de impostos é imputado ao ano em que se verifica e não se repete.

4. UMA QUESTÃO DE HONESTIDADE

Luís Montenegro já tinha dito que, “nos últimos anos, o único partido e único governo que cortou pensões foi o do PS” e que, com Passos Coelho, o “corte que houve e que salvaguardou todas as pensões mais baixas foi inscrito no memorando negociado pelo PS". A narrativa é falsa, como já escrevi aqui. Sim, Sócrates foi o primeiro a cortar as pensões. Sim, havia novos cortes inscritos no memorando. Mas Passos Coelho introduziu ainda mais cortes e em escalões de rendimentos ainda mais baixos.

Talvez embalado pela complacência com que o comentário (não tanto o jornalismo) tratou esta forma expedita de se “reconciliar” com os reformados, Luís Montenegro deu um passo mais perigoso, tentando vender a ideia de que o governo de Costa cortou mil milhões de euros aos reformados e que só depois recuou e repôs o que tinha cortado.

Devo ter estado entre os comentadores mais ativos na denúncia do truque de Costa que, se tivesse acontecido, levaria a um corte nas pensões futuras: Costa fazia uma atualização das pensões de 4,5% (em vez dos 7% ou 8% que a lei impunha, em 2023) que seria tratada como um adiantamento que não contaria para a base a partir da qual se viriam a fazer as atualizações subsequentes. Voltei a ser vocal, e dessa vez com menos companhia, quando a ministra da Segurança Social cometeu a enorme irresponsabilidade de acenar com uma falsa insustentabilidade da segurança social, fragilizando a confiança no sistema para justificar este truque. Mas isto não muda os factos: não só António Costa acabou mesmo por cumprir a lei, como nem sequer repôs o que tinha retirado, como disse Montenegro, porque, talvez graças à pressão política, não chegou a retirar coisa alguma.

O problema deste momento é que os reformados, que acabam de ter um aumento simpático e não perderem, de facto, um cêntimo de reforma com este governo, puderam assistir ao vivo como se constrói uma falsa narrativa, contrariada pela sua própria experiência. Como Pedro Nuno Santos rapidamente aproveitou para assinalar.

4. UMA QUESTÃO DE TATO POLÍTICO

Dos cinco episódios, o menos relevante para a generalidade das pessoas terá sido o que envolveu o nome de dois ex-primeiros-ministros. Mas não deixa de ter impacto político interno. Quando, num momento de guerrilha política que nada acrescentava ao debate (ao contrário de outros, mesmo que crispados), Pedro Nuno Santos decidiu ir buscar a ausência de Pedro Passos Coelho na campanha de Montenegro, este respondeu de forma automática, com a cartada de José Sócrates, que já nem é militante do PS.

Sou dos que acham que, ao contrário do que pensa a direita mediática, Pedro Passos Coelho é um ativo tóxico do ponto de vista eleitoral. E, ao contrário de Sócrates, não faz apenas parte do passado. É um futuro que paira sobre o PSD. Mas, por mais crítico que eu seja de Passos, não há equivalência moral entre ele e Sócrates. E foi Montenegro que resolveu trocar os dois cromos, ofendendo, com isso, o seu próprio partido.

Sem analisarmos a energia com Pedro Nuno Santos (por vezes até exagerada) e os momentos mais altos e baixos de cada um no ataque e na defesa de cada proposta, estes cinco episódios chegariam para decidir um debate. Porque são politicamente sintomáticos. E é isso que fica para além do jogo do dia. Como se viu nas tentativas de Montenegro conter os danos com saiu do Capitólio.»

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