6.3.24

Greve do “jornalismo mil euros”: em nome da democracia

 

@Gerhard Haderer

«Deixem-me fazer uma pausa na campanha. É que isto também tem a ver com a democracia. Tanto como a participação nas eleições.

Quando Pedro Coelho, que dirigiu o congresso dos jornalistas, anunciou, na antiga rede social Twitter, a marcação da primeira greve geral de jornalistas para 14 de março, os comentários dos leitores não foram de solidariedade. Deixando de lado fanáticos ou bots que combatem a comunicação social livre porque gostariam de não ter resistência à desinformação a que se dedicam, muitas seriam pessoas normais que olham para os jornalistas como inimigos. Uns lidam mal como o pluralismo, outros queixam-se, com razão, da falta dele. Uns não aguentam o escrutínio, outros lamentam a decadência (real) do jornalismo livre e independente.

Poucos, quase nenhuns, perceberão que a crise do jornalismo não resulta da incompetência dos jornalistas, apesar de ela existir, como em qualquer profissão. O jornalismo não é menos sólido, menos livre, menos rigoroso e até menos relevante porque os jornalistas são piores. O jornalismo não é uma atividade solitária, apesar de o “star system” que também adotou passar a essa ideia. É feito por estruturas e a sua qualidade depende de como elas funcionam e para aquilo para que foram pensadas. A mercantilização da informação nada tem de novo. É tão antiga como o jornalismo. Nova é a incapacidade de os jornalistas manterem a autonomia em relação à lógica estritamente mercantil. Hoje, os diretores de informação são diretores de vendas e os jornalistas produtores de conteúdos, atentos aos ecrãs que lhes dizem quantos cliques conseguiram. E isto explica-se pelas condições que alienaram o seu trabalho.

O crime empresarial cometido contra a TSF, a rádio que mudou a forma como se informa em Portugal, o “Diário de Notícias”, jornal nacional mais antigo do país, e o “Jornal de Notícias”, diário com maior implantação regional, foi o grito de alerta para todos: nós seremos os próximos. A situação na Global Media era má há muito tempo. Sofre, como toda a imprensa, com uma crise de modelo de negócio trazida pelas redes sociais, que sugaram grande parte da receita publicitária sem produzir muitos conteúdos e pagando muito poucos impostos. Sofre com uma nova cultura de consumo que não aceita pagar para ler notícias ou consumir conteúdos culturais. E sofre com o preconceito de quem vê o apoio cego do Estado a um bem essencial para a sobrevivência da democracia como mais perigoso para a independência do jornalismo do que o mecenato ideológico privado.

Os cortes de pessoal e de meios têm levado à insustentabilidade de um jornalismo com mínimos de exigência e qualidade em todos os grupos de comunicação social. Mas na Global Media as coisas degradaram-se até ao absurdo. Depois da entrada de empresários sem qualquer relação ou conhecimento do setor, o toque de finados veio com a entrada de um fundo com sede nas Bahamas que ninguém sabia a quem realmente pertencia, que interesses promovia e que parecia depender da venda da participação da Global Media na Lusa ao Estado para pagar os salários nos meses seguintes.

O que aconteceu na Global Media vai acontecer a grande parte das empresas de comunicação social, presas fáceis para se transformarem em instrumentos de propaganda do poder do dinheiro. Isso, se me permitem, tem sido visível nesta campanha eleitoral. E só é possível porque os jornalistas se proletarizaram.

Jornalismo mil euros

O Inquérito Nacional às Condições de Vida e de Trabalho dos Jornalistas em Portugal, encomendado pelo Sindicato dos Jornalistas, diz-nos que o salário médio da classe está nos 1250 euros líquidos. Um terço recebe menos de mil euros – a grande maioria vive e trabalha nas regiões mais caras do país. Há muitos repórteres e editores de imagem com falsos recibos verdes, estagiários a receber 150 euros por mês, freelancer a trabalhar por 20 euros à peça. Esqueçamos a questão social, que atinge outras classes. É possível escrutinar os poderes públicos e privados com este nível de proletarização?

Os jornalistas perderam autonomia em relação aos editores e diretores, respondendo a eles como um operário responde ao encarregado. Perderam sentido critico, porque é impossível mantê-lo quando produzem em série várias peças por dia para manter ativos os portais de conteúdos em que se transformaram os órgãos de comunicação social. Hoje, muito menos jornalistas que recebem muito menos fazem muitíssimo mais. Segundo o inquérito referido, metade fala em “esgotamento”.

As redações deixaram de ser intergeracionais, porque o os jornalistas mais novos, mais baratos, substituem quase todos os mais velhos, mais caros. Não sou dos que acham que as novas gerações estejam menos preparadas. Mesmo no jornalismo, que se tornou menos atrativo, isso não é verdade. Mas as redações perderam memória, o que é tantas vezes evidente no que chega às pessoas. E perderam o lastro deontológico que passa de geração para geração. O “jornalismo mil euros” não pode cumprir a função de informar.

A primeira greve…

O Sindicato dos Jornalistas deu um passo arrojado para uma classe com poucos hábitos de luta e de organização, em que tantos não se sentem “trabalhadores” até serem despedidos e em que tantas pessoas estão numa situação muito precária: marcar, quando o ambiente da comunicação social é de pré-colapso, uma greve geral para dia 14 de março, poucos dias depois das eleições. Uma decisão que resulta de uma deliberação do congresso dos jornalistas, realizado em janeiro. A mensagem principal deveria ser esta: resolver a insustentabilidade do modelo de negócio com a proletarização total do jornalismo pode resolver o problema aos empresários, não resolve os problemas do jornalismo e do seu papel para a democracia. Pelo contrário, agrava-os.

O que os jornalistas exigem é quase o regresso ao início do mais básico das relações laborais: contratos de trabalho estáveis, pondo fim a falsos recibos verdes, aos estágios ilegais e aos contratos a termo, que são, entre os jornalistas, estatisticamente mais comuns do que noutras profissões especializadas. Um aumento dos salários para mínimos de decência. Pagamento de horas extraordinárias ou isenção de horário. Compensações por trabalho noturno ou fins de semana. Tudo o que qualquer operário exige numa fábrica. E, já agora, que o governo português acompanhe o debate europeu para encontrar soluções de sustentabilidade para uma atividade que, sendo económica, é indispensável à sobrevivência da democracia e tem proteção constitucional. Não pode falir, como um todo.

Não nos podemos deixar limitar pelos discursos dos que conseguiram transformar o apoio dado ao setor durante a pandemia num ataque à liberdade e não no oposto. Mesmo que se tenham de encontrar soluções mais neutras, esse é o discurso de interesses privados e políticos que querem ver a comunicação social insustentável para mais facilmente a quebrar, pondo a desinformação nas redes no seu lugar, ou comprar, pondo-a ao serviço da propaganda.

...em muitos lugares

Apesar de muito difícil, esta greve não é uma aventura. Está alinhada com uma luta global em quase todas as democracias de que os jornalistas portugueses não se devem alhear. Nos EUA, houve greves de jornalistas um pouco por todo o país. Ao contrário de outros setores, como o automóvel, os jornalistas não conseguiram estancar a brutal perda de rendimento com a inflação. E as reduções de pessoal sucedem-se, com cada vez mais exigências para quem fica. Houve greves no Chicago Tribune, Los Angeles Times, New York Times, Washington Post, New York Daily News, Forbes, Vanity Fair ou Business Insider. Quase todas inéditas em mais de um século.

Também tem havido greves no Reino Unido, incluindo na BBC, e em Espanha (com marcações de greves e lutas no ABC, El Pais, El Mundo, La Vanguardia e El Perodico, protestando contra uma década de congelamento ou cortes salariais). A melhor imprensa internacional também deve ser referência no grau de exigência de quem nela trabalha.

Pelo menos por agora, os cortes brutais, mesmo nos órgãos de comunicação social mais globalizados, não resultam de uma modernização que permite fazer o mesmo com menos. Pelo contrário, está-se a fazer muito mais com muito menos. Resultam de uma crise do modelo de negócio (e da entrada de empresários sem qualquer relação com o setor) que não pode ser tratada como noutros setores. A economia sobrevive sem imprensa livre. A democracia é que não.

Por isso, o debate tem de ser diferente. Não pode ser de como as empresas de jornalismo podem ser viáveis, mas de como o jornalismo pode ser viável nestas empresas. Debate que só acontecerá quando a redução de pessoal e de salários até nenhum jornalista ser realmente livre de informar deixar de ser uma opção. A greve de dia 14 é dos jornalistas. Mas está muito mais em jogo do que eles.»

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