30.3.24

Lugares-comuns, duplicidades, agendas escondidas no contínuo político-mediático

 


«“Palhaçada parlamentar” – Há uma coisa em que muitos jornalistas fazem o papel de alimentadores do Chega. O que aconteceu na Assembleia é mais normal do que anormal, dada a sua composição actual, e em nada justifica a série de designações pejorativas, de “palhaçada”, “teatro”, espectáculo lamentável”, “rebaixamento da Assembleia”, etc. De repente, o contínuo político-mediático encheu-se de gravitas.

O que seria anormal é que um nome proposto solitariamente por um único partido, sem maioria, sem qualquer negociação prévia, mas apenas “informação”, dado como um facto consumado para todos “engolirem”, passaria por uma espécie de carpete vermelha com a obrigação de todos o aprovarem sem reservas. Porquê? A maioria daquilo que se disse como sendo quase uma obrigação institucional não tem qualquer fundamento, nem legal, nem constitucional. Todos os nomes da Mesa da Assembleia vão a votos e ir a votos não é um pró-forma.

É legítimo os deputados, para isso é que a sua decisão é protegida pelo voto secreto, decidirem sobre os nomes propostos fazendo um julgamento moral e político individual. Reprovar um qualquer candidato é inteiramente legítimo, sem que isso signifique qualquer entorse nas regras constitucionais ou em práticas habituais que podem ser mudadas sem crise institucional. Aquilo a que se chama hábitos, procedimentos habituais, não são regras, muito menos regras para uma Assembleia com a composição da actual. Aliás, o facto de se tratar de um voto secreto mostra como, se os deputados tivessem mais vezes a liberdade do segredo, votariam de forma diferente das instruções partidárias.

Em democracia, os parlamentos são o retrato das diferenças e não lugares de "consenso" – A Assembleia não é, como se disse, o “local onde se fazem acordos”, é o local onde se manifestam as diferenças, as “partes” que são o ar da democracia. Só a nostalgia da não-política e a obsessão de que a boa política é o “consenso” – uma das sombras deixada pelos 48 anos de censura e de demonização da política – explicam a pseudo-indignação com o que se passou.

Haver acordos depende do contexto, da composição política, da ecologia política e dos interesses. Ora, a ecologia política dos nossos dias é a da radicalização, verdade seja dita, hoje mais à direita do que à esquerda. E os acordos devem ser julgados não porque tenham de necessariamente existir, mas pelo seu conteúdo e pelo apoio parlamentar que têm.

"Governo de combate" – Outro lugar-comum sistematicamente repetido é a história do “governo de combate”. Mais uma vez, esta designação não significa nada. Ou significa muito, se a entendermos (como não é feito pelos que a usam) como designando um governo cuja prioridade não vai ser governar, mas fazer combate político à oposição e evitar a todo o custo cair. A designação não é inocente, destina-se a minimizar aquilo que, se o Governo fosse do PS, estaria a ser dito por todo o lado: é um governo de partido, em que as escolhas traduzem fidelidades e compromissos partidários antes de competências. Seria, se tivesse outra cor política, designado como um “governo de boys”, o que pode ser injusto para o actual, como para o anterior. Mas o domínio da direita no comentário político e a impregnação do espaço público com classificações convenientes exercem os seus efeitos.

"Oposição de combate" – Interessante verificar que ninguém fala de uma “oposição de combate”, porque isso seria imediatamente classificado como uma posição radical. Orwell explicou há muito que quem manda nas palavras manda em muito mais do que as palavras.

Duplicidade – A duplicidade é o mais perverso processo em curso. Até à queda do Governo do PS, o silêncio era falta de transparência, agora é recato. Se este Governo fosse do PS, havia um clamor sobre um “governo de partido”, que “não se abriria à sociedade”, feito a partir do aparelho partidário, em que a tão elogiada “experiência política” seria vista como uma coisa negativa, etc., etc.

O que é um bom governo em democracia (1) – O ciclo democrático distingue a democracia da demagogia, sua irmã perversa. Um dos aspectos fundamentais que distinguem a democracia da demagogia é não ser uma democracia directa, mas representativa, parlamentar, em que o povo escolhe quem os representa e dá-lhes um poder por um determinado período. Em algumas das democracias, a constituição diferencia, nos corpos eleitos, o tempo entre eleições conforme a natureza das decisões e a sua gravidade, menos tempo para o “governo” corrente, mais tempo para decisões de fundo, em particular o Orçamento, as Forças Armadas, a paz ou a guerra. A razão é permitir tomar decisões difíceis sem a pressão imediata de ganhar eleições. Por isso, o ciclo democrático implica usar o estado de graça para tomar decisões difíceis no início dos mandatos e as mais fáceis, as “eleitoralistas”, no fim. Em democracia, governar para ganhar eleições é normal e aceitável, com a condição de se manter a capacidade de tomar decisões impopulares, mas entendidas como necessárias.

Bem sei que este Governo não tem tempo para cumprir o ciclo democrático habitual, mas se governar apenas a pensar nas próximas eleições, governará mal.

O que é um bom governo em democracia (2) – É não ser um governo assente na resposta a reivindicações. Deste ponto de vista, PS e PSD comportaram-se em campanha do mesmo modo, e uma das fragilidades deste período final do Governo do PS sob tutela presidencial foi criar um vácuo de poder que tornou as reivindicações de professores, polícias e médicos, e de outros grupos profissionais, no cânone das promessas de governação. O que vai acontecer é que ou não se cumprem as promessas, o que é um bónus para a demagogia, ou se cumprem nos termos em que foram aceites e não há “excedente” que resista. Nem “excedente” para o fazer, nem poder político sólido para o recusar. Quem faz a cama acaba por ter de se deitar nela.»

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