16.3.24

Protesto e as formas de o debelar

 


«Dizem, portanto, que foi um voto de protesto. Que o eleitorado apostou em discursos de rutura e na punição do sistema. Que as razões há muito que estavam lá – um mal-estar que se entranhou na sociedade portuguesa, nos segmentos sociais com vida dura, descrentes de instituições corroídas e de uma democracia que não os sabe ouvir.

Tudo isto cabe certamente numa leitura sobre os resultados eleitorais de domingo. Explica a queda vertiginosa do PS, dois anos apenas desde a sua maioria absoluta. Explica a recomposição à direita, em que a AD ganha as eleições com o pior resultado da história dos partidos que a compõem. E explica a subida estratosférica do Chega, que aconteceu em todo o país: no interior e no litoral; nos centros das cidades, nas periferias urbanas e nos espaços rurais; nas freguesias ricas e nas freguesias pobres. Esse voto, além de atestar a “normalização” da extrema-direita na política portuguesa, mostra também que anseios e orientações políticas provavelmente contraditórias se juntaram num voto entendido como “contra” a situação.

Não há, portanto, uma razão para esta explosão do Chega – há várias. Para além das dimensões xenófobas e autoritárias, este voto também teve causas sociais e económicas, como tem sido apontado em reportagens de jornalistas, por analistas e políticos. Ou seja, que o voto na extrema-direita é um protesto contra a pobreza, os baixos rendimentos e a ausência de perspetivas de melhoria de vida.

É bem possível. Recentemente, a Pordata indicava que cerca de 1/3 das famílias em Portugal vivia com 833 euros por mês. Quase um quinto dos portugueses vive em situação de pobreza. E o país é marcado por uma enorme desigualdade na distribuição de rendimento, quando comparado com o contexto europeu. Se o voto no extremismo veio da raiva contra a pobreza e os baixos rendimentos, a questão a colocar é: como vai o mais que previsível futuro governo da AD combater esses problemas no novo ciclo político.

Uma coisa é certa: não será com mais apoios do Estado. Montenegro foi claro durante a campanha que é contra a “subsidiodependência”. Até o subsídio de desemprego o líder da AD fez questão de atacar, como se de uma benesse se tratasse, quando a sua existência resulta de descontos dos próprios trabalhadores e funciona como um seguro para uma situação de desemprego involuntário (ninguém se pode autodespedir e ter subsídio). Com o novo governo, a pobreza não será combatida com prestações sociais ou apoios do Estado.

Se não é com apoios, deverá ser então através de salários mais elevados. Mas não será pela subida do salário mínimo. Os partidos da AD sempre foram contra aumentos do SMN, e disseram mesmo que seria o descalabro na economia portuguesa. A IL, guardiã dos livros sagrados do neoliberalismo, propõe, por exemplo, estilhaçar o SMN em salários mínimos municipais e negociados com o patronato.

Talvez os salários possam subir se a economia crescer? É bom notar que, no último trimestre de 2023, os dados mostram que Portugal foi mesmo a economia que mais cresceu na zona euro. Aliás, a economia portuguesa tem vindo a crescer continuamente desde 2014, com a exceção óbvia do ano da pandemia. Contudo, o padrão de baixos salários não se alterou. Se a pergunta é se podemos crescer ainda mais, a resposta é que parece difícil, num contexto europeu de retração, porque menos crescimento na Europa significa menos exportações para Portugal, sejam elas de bens ou de serviços.

E se déssemos “a volta à economia”, libertando-a do “excesso” de presença do Estado, como alguns têm dito? Este é um remédio que me parece difícil de aplicar no ano de 2024, quando já “retirámos” o Estado da economia nos últimos 30 anos. Privatizámos a energia, as telecomunicações, a banca, o cimento, as infraestruturas (rodoviárias e aeroportos). Até a rede elétrica, onde não há concorrência possível, foi vendida à China, e nem nos EUA os correios são privados. Desregulamentámos e liberalizámos esses mercados, como vários governos anunciaram com gáudio. Parece-me difícil dizer hoje que os problemas da economia portuguesa e os baixos salários são culpa da existência da CGD, da TAP (em vias de privatização) ou da CP.

As privatizações de que eles falam, aliás, são de outro teor. É a privatização das funções do Estado na saúde, na segurança social, na educação e no mais que estiver à mão. Há empresas que vão ganhar muito dinheiro do Orçamento do Estado, isso é certo. Se vai fazer crescer a economia e chegar ao bolso dos portugueses é outra questão.

Talvez faltem estruturas que potenciem a atividade económica, ligações e mobilidade para o desenvolvimento das empresas. Nos últimos 30 anos, o Estado, em parcerias público-privadas, ligou o país com pontes e autoestradas que, por vezes, até correm paralelas.

E também a questão da qualificação da mão-de-obra foi enfrentada pelo Estado e resolvida pelo ensino superior público. O problema é que essa nova geração qualificada tende agora a “fugir” do país em busca de melhores salários. Dizem que se baixarmos os impostos, os jovens deixam de emigrar. O PS aceitou esse argumento e já implementou o IRS jovem. Contudo, um estudo da FFMS indicava que 72% dos jovens ganham menos 1.000 euros líquidos. Mesmo sem IRS, a margem de aumento de rendimento disponível é tão curta que não vejo como isso possa ser sedutor.

Se baixarmos o IRC das empresas, estas podem aumentar salários. Cerca de metade das empresas não pagam IRC, pouquíssimas pagam a taxa máxima, como aliás a sua queda em relação ao PIB nos últimos anos tem vindo a mostrar. Não foi por isso que abandonámos o perfil de economia de baixos salários.

Mas talvez a redução de impostos possa atrair investimento estrangeiro que qualifique o perfil da economia. O Banco de Portugal mostrava recentemente que Portugal não tem um problema na atração de investimento estrangeiro – entre 2008 e 2023, o IDE duplicou. Só que tem sido dirigido em larga escala para o imobiliário, sendo parte do problema da crise na habitação, e para o turismo, que é exatamente um dos setores onde se criou muito emprego, mas onde os salários são mais baixos…

Enfim. Estou em pulgas para saber como é que o novo governo responde à pobreza e mal-viver que os portugueses manifestaram com o seu voto no domingo.»

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