12.8.24

O valor de martelar a realidade para dar uma borla fiscal

 


«O artigo de Manuela Ferreira Leite no semanário Expresso de 2/8/2024, O valor de decidir, é muito mais que uma defesa da descida do IRC — é uma tentativa de justificar essa descida como algo não-ideológico, assente em boas práticas e no pensamento comum. De certa forma, o único caminho inevitável para gente moderada e sensata. Só que a justificação deste centrismo iluminado rapidamente choca de frente com a realidade.

Segundo Manuela Ferreira Leite, qualquer outra visão de política económica que não resulte na descida do IRC está toldada por motivos ideológicos. Daqui se depreende que Ferreira Leite e a ortodoxia que encarna estão intelectualmente isentas. É uma soberba tão grande quanto falsa. Talvez fosse útil revisitar o que disse um dos maiores economistas de todo o sempre: “Cidadãos práticos que se dizem isentos de qualquer influência intelectual e ideológica são, tipicamente, escravos de algum economista defunto.” E as justificações que Manuela Ferreira Leite escreve estão há muito enterradas.

A recusa da descida do IRC, de acordo com Manuela Ferreira Leite, “baseia-se em preconceitos e não na realidade, porque esta seria a redução de impostos que mais efeitos produziria na actividade económica, criando riqueza, que beneficiaria de forma sustentável os que mais precisam de protecção.” Escrever este encadeamento de palavras é fácil: encontrar sustentação para elas é francamente mais difícil. O que se reproduz nesta passagem é a típica fezada da economia da pinga (trickle-down economics): “Vamos descer os impostos aos mais ricos e, por algum milagre, os benefícios vão decair para toda a sociedade.” Caro leitor, qualquer semelhança com o neoliberalismo é mera coincidência — já vimos que a linha de Manuela Ferreira Leite é isenta de qualquer ideologia.

A descida do IRC irá beneficiar desproporcionalmente poucas empresas — e as que menos precisam. Cerca de 40% das empresas não pagam IRC, seja porque não apresentam lucros tributáveis, seja pela quantidade de isenções fiscais que têm à disposição. Mas olhemos para as que pagam: a taxa efectiva média situa-se em torno dos 20%, abaixo da taxa normal de 21%. Porquê? Sobretudo porque o tecido industrial português é assente em lucros baixos que ocorrem em empresas muito pequenas. Por isso, a diminuição do IRC não irá beneficiar significativamente estas empresas.

Então, quem beneficia? Sobretudo as grandes empresas, as mesmas que hoje apresentam lucros recorde e que terão aqui uma borla fiscal bastante apetecível. Seria de esperar que estas pagassem o grosso do IRC — e pagam —, mas será que pagam muito mais IRC do que as pequenas empresas? Segundo o Banco de Portugal, nem sempre: “A ideia de que as grandes empresas pagam mais IRC do que as pequenas nem sempre se confirma.” Isto ocorre sobretudo porque o poder económico que as grandes empresas têm abre portas a instrumentos de engenharia fiscal que não estão disponíveis às mais pequenas, permitindo que se reduza significativamente o montante tributável.

Mas que fique claro: ninguém à esquerda se opõe, à partida, à descida do IRC. Opomo-nos à fezada de que irá resultar, por si só, em salários mais altos, mais investimento na economia e maior produtividade. Se a descida do IRC vier num pacote que inclua aumentos salariais, aumento da democracia nas empresas, representantes dos trabalhadores nos conselhos de administração e reforço da sindicalização, a esquerda não se irá opor. Dessa forma existem garantias de que irá beneficiar toda a sociedade — e não os mesmos de sempre.

É uma quimera acreditar que uma descida de um qualquer imposto resultará, por si, em benefícios para a sociedade. Não é só porque a fiscalidade é um mau instrumento de política económica. É sobretudo porque a correlação entre crescimento económico e nível geral dos impostos é nenhuma. Não há nada de natural ou ideal nesta ou naquela taxa de imposto: depende tudo da ideologia dominante e da correlação de forças. Quer se creia que se é isento ou não.»


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