«O título é uma figura de estilo, claro; as televisões não são incendiárias, mas o que se passa na informação televisiva, cada vez que há grandes incêndios, é de uma grave irresponsabilidade social: há estudos que mostram o efeito mimético que tem, junto de algumas pessoas perturbadas, o ver chamas na televisão. Por isso, as televisões deveriam voltar atrás, ao que já aconteceu, quando se puseram de acordo para evitar a exibição de imagens dos incêndios.
Ou será que sonhei? Procuro o rasto noticioso desse acordo entre RTP, SIC e TVI (ainda não existia CMTV) e não o encontro; falo com outros jornalistas e já poucas memórias há; mas vários camaradas me confirmam que sim, que ele existiu. Progressivamente, nos últimos anos, as chamas voltaram à informação televisiva. E em força.
Não tenho o documento, mas uma busca rápida permite encontrar declarações, por exemplo, de Cristina Soeiro, psicóloga da Polícia Judiciária, que em 15 de Setembro de 2017 dizia à Lusa que havia um efeito de banalização provocado pelas imagens de chamas nas televisões. E era bem concreta sobre a importância de evitar desde expressões como “época de incêndios” até aos longos minutos na televisão com imagens de floresta a arder que são excessivos e podem amplificar a situação.
Em 18 de Agosto do ano passado, a TSF ouviu o presidente da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF), Tiago Oliveira, que dizia, entre outras coisas relevantes, que se sabe “que as imagens de chamas provocam comportamentos miméticos”. E a provedora da RTP, Ana Sousa Dias, referia queixas de telespectadores e sublinhava que “há um entendimento de que é perigoso insistir nas imagens de fogos florestais”.
Trata-se, por isso, de uma questão de (ir)responsabilidade social. Como jornalistas, o nosso dever é informar. Mas informar bem, com rigor e contenção, sem exacerbar emoções nem apelar a instintos básicos. Não precisamos de directos infindáveis, a descrever o mesmo, dezenas de vezes, em todo o lado: cenário dantesco, inferno, tudo a arder, pessoas aflitas e a chorar, mangueiras, “falta de meios”... Ou a queixa (disparatada, mas compreensivelmente desesperada) de que “não se vê um bombeiro”, como se fosse possível ter bombeiros em cada esquina de um perímetro de 100 quilómetros de incêndio.
O que precisamos não é de uma informação monotemática: agora é a pandemia, a seguir uma tragédia, depois o futebol, outra tragédia, mais futebol, no Verão chegam os incêndios, depois os abusos sexuais (que ainda são tema, mas parece terem desaparecido da agenda mediática), depois o futebol, depois os incêndios. Não, não queremos. Queremos um noticiário televisivo rigoroso, diversificado, aprofundado, sucinto (e já agora, que não tem de durar hora e meia).
Claro: há coisas muito mais graves na questão dos incêndios. A emergência climática, a incapacidade de fazer prevenção e boa gestão política, o ordenamento do território e das florestas, a ineficácia de muitas operações de combate (como se viu no recente incêndio na Madeira), a falta de civismo e cultura; e um longo etc.
Mas o que se passa no jornalismo televisivo também é importante. Estou com isto a criticar opções de (várias) pessoas que respeito. Por isso mesmo é que me sinto ainda mais obrigado, enquanto jornalista, a insistir contra várias das derivas que a profissão tem vindo a sofrer (por exemplo, também na amplificação que faz da extrema-direita e do discurso racista e xenófobo, em vez de os reduzir à sua expressão). Neste caso, precisamos, sim, de questionar os poderes públicos fora da “época dos incêndios”, ser inoportunos quando as decisões tardam, ouvir os especialistas que tantas coisas importantes têm a dizer. O que não precisamos mesmo é de ver chamas. Nem de dias inteiros de noticiários monotemáticos. Caso contrário, estaremos, com isso, enquanto jornalistas, a ajudar a incendiar o país.»
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