18.12.24

O almirante e os possíveis contra-almirantes

 


«Apesar das autárquicas serem primeiro e dependerem mais de decisões partidárias (o PSD ainda tem de escolher o candidato ao Porto, ao PS ainda falta o candidato a Lisboa), as eleições presidenciais estão sempre a regressar ao debate público.

Só na cabeça do ajudante de campo do governo, Rui Rocha (e na de Ventura, claro), é que se acredita que previsões de défice feitas pelo Banco de Portugal são escritas pelo governador num guardanapo para preparar, sabe-se lá com que vantagem, a candidatura presidencial de Mário Centeno. Mas esta previsão, que não tem qualquer relação com as eleições, e a reforma imediata de Gouveia e Melo para o libertar para os seus “direitos cívicos”, acabaram por trazer o tema de volta.

Vivemos, nesta matéria, uma anomalia democrática: a de ter um governador do Banco de Portugal e um Chefe do Estado-Maior da Armada, no ativo, como candidatos quase confessos a Presidente da República. Como escrevi há dois meses, são dois produtos de António Costa, que os promoveu como seu escudo protetor. O primeiro, para ganhar credibilidade junto da Europa, quando cometia o pecado político de se aliar ao resto esquerda; o segundo para afastar a vacinação dos ataques da oposição e dos bastonários que para ela trabalhavam, pondo um militar, que então não tinha qualquer interesse partidário, à frente do processo.

Os dois candidatos partilham um mistério: qual o seu pensamento político, para além das suas especialidades?

De Gouveia e Melo, sabemos que não teve qualquer problema em usar as Forças Armadas para uma promoção política, o que só nos pode deixar inquieto quanto ao seu perfil político. Não sabendo o que pensa, sabemos que acha que “somos uma grande nação que se dividiu no estado português, no estado cabo-verdiano, no estado brasileiro, no estado angolano...”, o que, aparentemente, atira por terra a ideia de um homem centrista e moderado.

Estou a dizer que é um radical? Não. É provável que nem o almirante tenha consciência do alcance do que disse. Estou a dizer que é provável que aconteça com ele o que acontece a pessoas pouco politizadas que, mesmo assim sendo, se atiram para as águas que desconhecem: que ache coisas difusas e pouco pensadas, quase sempre alinhadas com mitos e lugares-comuns, mesmo que sejam perigosos. Sem se dar sequer conta. Estou a dizer que é provável que Gouveia e Melo saiba tanto de política como eu sei de submarinos.

Suspeito que não seremos apenas nós a descobrir, no processo de candidatura do almirante, o que ele pensa politicamente. Será ele mesmo. Também descobrirá se aguenta a pressão política de uma campanha, já sem o tratamento mediático a que teve direito durante a pandemia, que em tudo contrastou com o escrutínio ao seu antecessor. Ou talvez o tenha, mesmo numa corrida eleitoral. Não são poucos os jornalistas que se pelam pela autoridade da farda. Lembro-me de Fernando Nobre e como espatifou, num mês, a credibilidade que construiu em décadas.

Os sinais não são os melhores. As inenarráveis ilustração e texto da revista da Armada, em que o CEMA era comparado a D. João II, diz-nos o que sabem todos os que privaram com Gouveia e Melo: que, se depender do seu ego, tem a maioria absoluta garantida. Não é difícil imaginar o que pensa de si quando, sem qualquer experiência política ou cívica, se acha em condições de ser o principal árbitro das nossas instituições democráticas. Seria como passar da recruta para chefe da Armada num ano.

Ter alguém de que desconhecemos o pensamento político, sem experiência cívica ou política (a não ser que dirigir uma operação logística já habilite a ser chefe de Estado), evidentemente egocêntrico e com uma cultura militar dada a algum autoritarismo, não é o que esta democracia frágil aconselha. Mas não tenho dúvidas que responde ao ar dos tempos. Não é remédio para a doença, é sintoma.

Haja, à direita, um candidato forte (Leonor Beleza, que já se pôs fora) ou fraco (Marques Mendes, que ainda terá de fazer muitos fretes televisivos para conquistar o apoio do PSD) e uma candidatura transversal como a Gouveia e Melo, se não engordar imenso ou esvaziar totalmente, temos o cenário ideal para haver, pela primeira vez desde 1986, uma segunda volta. E o debate será, se assim for, quem vai à segunda volta: o candidato da AD, ou o da esquerda?

Não me parece que Mário Centeno (já nem falo de António José Seguro) seja o candidato capaz de mobilizar toda a esquerda que não fuja para o almirante. Cativações e o mais baixo investimento do século, medindo-se com a direita no défice, não é o que mais une os eleitores de esquerda para eleger um Chefe de Estado (não um ministro das Finanças). E não vale a pena pensar nos eleitores do centro se nem à segunda volta se for. Para alem disso, Centeno será, disso não tenho dúvidas, o pior Presidente para Pedro Nuno Santos – a explicação de Churchill sobre a diferença entre inimigos e adversários esclarece quem tenha dúvidas.

Se Centeno, Seguro ou até Vitorino forem as escolhas do PS, é difícil o resto da esquerda não ir a jogo. Por mais fragilizada que esteja, são 12% dos votos, indispensáveis no confronto com a direita para ir a uma segunda volta. Uma candidata como Elisa Ferreira, respeitada, mulher e longe de ser esquerdista, talvez pudesse conquistar o apoio do Livre, Bloco e PAN (o PCP estará sempre fora).

Se Pedro Nuno Santos escolher o tecnocrata centrista para voltar a tentar provar, pela enésima vez, que não é Pedro Nuno Santos, o mais provável é que apareça um candidato independente à esquerda, capaz de entrar em algum eleitorado socialista e de ter o apoio de outros partidos de esquerda.

Na sua jubilação, Sampaio da Nóvoa colocou-se na linha de partida. É uma repetição, é verdade. Mas a sua autoridade académica, o seu perfil republicano (com a probabilidade de ter o apoio de Ramalho Eanes), o facto de ter conseguido 23 %, quase sem apoios partidários e contra o fortíssimo Marcelo, não ter ligações aos partidos e vir da sociedade civil faria dele um bom contra-almirante. Sobretudo se não tivesse, como Gouveia e Melo não terá, o apoio de nenhum dos partidos do arco poder. Com uma vantagem: como concorreu há dez anos, sabemos perfeitamente o que pensa e que até se safa em campanha.»


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