«Depois de tomar conta das televisões, continuando a ter mais tempo de antena do que o verdadeiro líder da oposição; das redes sociais, onde os algoritmos de Musk e companhia favorecem a extrema-direita; e do Parlamento, onde Aguiar-Branco deixa que mande quem grita mais alto, André Ventura decidiu passar à conquista da Presidência da República.
Não, não estou a falar das suas candidaturas a tudo a que se possa concorrer, porque lidera um partido onde só ele está autorizado a pensar porque, em abono da verdade, é dos poucos que o consegue fazer. Estou a falar da tentativa de ser ele a marcar reuniões do Conselho de Estado. Sobre segurança, claro. Seria só mais um número de Ventura se o Presidente da Repúblicas não tivesse contribuído, de forma inédita, para que o circo continuasse para lá do dia em que a coisa foi proposta.
É sintomático do desnorte perante os jogos de Ventura que Marcelo Rebelo de Sousa não tivesse fechado o tema no próprio dia, respondendo que ele é ele que, fora das exigências constitucionais, decide quando se convoca o Conselho de Estado. Como o conselheiro de Estado Marques Mendes defendeu, aliás.
Devia ter fechado, porque nenhum dado estatístico justificaria uma reunião do Conselho de Estado sobre este tema. Nunca houve um Conselho de Estado sobre a habitação, provavelmente o problema mais grave que o país atravessa. Nunca houve um Conselho de Estado sobre violência doméstica, o problema mais grave de segurança em Portugal. Porque havia de haver um Conselho de Estado sobre segurança? Porque há um partido que tem um produto para vender (o medo que garante o voto irracional), precisa de criar mercado para esse produto e procura transformar todo o espaço público numa montra para o seu comércio? Tem conseguido. Há um mês que falamos de segurança e imigração, que nunca foram os assuntos que mais preocuparam os portugueses.
Devia ter fechado, porque se o Presidente da República não marca debates de emergência na Assembleia da República, os deputados não marcam reuniões do Conselho de Estado, mesmo que sejam conselheiros. Se André Ventura acha que esta é uma boa ideia, tem um lugar onde a propor, já que é conselheiro: no próximo Conselho de Estado. O próximo é já no dia 17, por causa da Madeira. E aí propunha e aí teria a opinião dos conselheiros e a resposta do Presidente.
Mas isto é se vivêssemos tempos normais. Não vivemos e, por isso, o Presidente da República inverteu a ordem dos poderes e decidiu consultar os conselheiros para saber se querem reunir para o aconselhar – é mesmo essa a função do órgão. Porque não se limitou a responder, por decisão sua, como era seu dever? Tem medo de assumir a sua posição? Tem medo, como sempre teve, da impopularidade? De se comprometer?
Com esta consulta estapafúrdia, é o Presidente da República a diminuir, mais uma vez, o cargo que ocupa. O preço deste pecado recorrente tem sido pago pela incapacidade de usar o poder que tem. De pouco vale pedir respeito do governo quando não se dá ele próprio ao respeito.
O problema é que Marcelo Rebelo de Sousa transformou as reuniões do Conselho de Estado em tertúlias, onde os conselheiros vão ouvir convidados em vez do Presidente ir ouvir os conselheiros. Ou numa oportunidade para criar factos políticos sem qualquer consequência. É um problema mais geral desta Presidência: a informalidade de tudo. Ela tem vantagens, como uma maior proximidade do Presidente aos cidadãos, especialmente importante quando sentem a política e o Estado como coisas distantes. E desvantagens, como a desinstitucionalização da política no preciso momento em que a extrema-direita tenta fragilizar as instituições. Nisto, o legado de Marcelo será trágico.»
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