«Quando andei no liceu, há muitos anos, tive um saudoso professor de filosofia que gostava de nos alertar para o sentido da vida com a seguinte frase: “A vida é uma fome!” Claro que só muito posteriormente, com os desenvolvimentos da biologia molecular, pude apreciar o real alcance daquela afirmação (que, na época, se cingia ao campo da psicologia). Trata-se de um enunciado de enorme lucidez.
Biologia...
De facto, os constituintes de tudo o que é vivo e do que à sua volta gravita são moléculas (e seus agregados). Por este motivo, a base de toda a vida encontra-se imersa no domínio quântico. Isto significa que, em termos clássicos, nunca conseguiremos entender cabalmente o seu âmago.
A metáfora “a vida é uma fome” ajuda-nos a compreender o que se passa. Traduz simplesmente que a nível das moléculas a regra do jogo é “comer” outras, isto é, captá-las e assimilá-las. Continuamente. Moléculas da vida existem desde há milhares de milhões de anos – ou seja, têm experimentado “comer” outras de todas as maneiras possíveis.
Quando uma maneira de “comer” resulta, elas repetem-na, continuamente, sucessivamente, até que, por sua vez, sejam comidas (assimiladas) por outras. E assim por diante… A vida procura inerentemente “sobreviver”. Experimentando novos caminhos sempre que as condições se alteram. Para conseguir sobreviver. É amoral. A moral é uma invenção dos seres humanos.
O vírus da covid-19 é um agregado molecular que encontrou um modo de se proteger e manter a coerência. Multiplica-se tirando partido da estrutura e funcionamento das células humanas. A propagação é feita aparentemente através de gotículas de líquidos orgânicos. O vírus espalha-se, portanto, não por efeito de agentes atmosféricos mas pelas movimentações e contactos das pessoas que o transportam.
Ecologia…
A pandemia resulta do excesso louco e insalubre de contactos próximos, frequentes, a qualquer distância, em toda a parte. É uma doença da globalização selvagem que afogou o mundo durante as últimas décadas apoiando-se na propaganda perversa e enganosa do “low-cost” e das experiências únicas e exóticas. Mas fica uma grande questão: quantos contactos próximos devemos ter?
Uma coisa é certa, não podemos confiar na publicidade massiva, que excita os sentidos amarfanhados pelas rotinas e pelas dificuldades diárias, de modo quase pornográfico, que só serve os interesses da acumulação, por meio de taxas de intermediação em tudo o que se move neste planeta, de mais e mais capital financeiro. O resultado está bem à vista. O medo de contágio instalou-se entre nós.
Há dois mil anos atrás, a quase totalidade da população deslocava-se a pé: percorria cerca de cinco quilómetros numa hora. Curiosamente, esta era a dimensão dos aglomerados urbanos antigos, das vilas ou dos centros das cidades de que tanto gostamos. Mas hoje o avião permite que nos desloquemos cerca de mil quilómetros durante a mesma hora.
Mudamos de país, de regras, de culturas, de hábitos ancestrais, quase que num abrir e fechar de olhos, sem tempo para nos adaptarmos, sem paciência para aprendermos a conviver com os outros que visitamos. Para rapidamente regressar a casa e depois continuarmos a fazer mais do mesmo. Quem lucra com isto? O intermediário facilitador desta dança zombie – a finança internacional.
Economia…
Claro que este “aspirador” financeiro sistémico provoca necessariamente uma escassez de recursos no outro extremo, nas finanças locais, nos orçamentos das nações soberanas que assim se viram obrigadas a desinvestir em tudo o que releva dessa soberania: protecção civil, justiça, saúde, educação… porque os sectores que propiciam a nova “promiscuidade social” (inteligente expressão que ouvi a um amigo) à distância, esses não podem sofrer beliscadura.
Estamos a viver uma época de enorme desajuste entre as mudanças tecnológicas e a mudança social. A capacidade material de transformação da realidade tornou-se incomensurável em relação à capacidade de adaptação e aprendizagem imaterial, cultural, institucional, disponível. Há que dominar este desajuste, tomando decisões corajosas com vista ao futuro.
A situação de medo colectivo em que vivemos é insustentável. Todos os países ligados electronicamente, em simultâneo, observando as faces amedrontadas dos outros. Não admira que a quarentena geral seja uma pobre medida de resolução do problema. A quarentena é eficaz para os infectados! A prioridade terá que ser a sua sinalização para que sejam tratados. Isolem-se em alternativa as populações umas das outras e retrocederemos à idade da pedra!
A razão deste grave entorse civilizacional tem que ver com a sobrevivência no imediato dos serviços de saúde nacionais. Ninguém quer o colapso dos sistemas de saúde nacionais por esse mundo fora. Seria um descalabro, não haveria sequer cuidados nos sectores privados capazes de atender às doenças dos muito mais ricos, que assim nem teriam para onde ir em tratamento.
E o futuro…
Julgando que tudo se acalmará em breve (virá uma vacina!), já se fazem contas aos montantes que foram despendidos à pressa para salvar os sistemas de saúde, valores esses que virão a ser pagos com juros nos anos próximos pelos suspeitos do costume – os contribuintes. Assim se retomará a acumulação de capital financeiro, temporariamente perturbada.
Chegados aqui, vemos com clareza onde a máquina da “globalização” gripou. Que fazer? Eis outra grande questão. Vemos que o caminho passa por revalorizar o ser humano, repor-lhe a dignidade de cidadão, empoderá-lo para que fique ciente dos seus deveres, desmascarar os falsos gurus, obrigar os governos a investir naquilo que é o mais importante – e que tem sido desvalorizado sistematicamente por estar ligado à “cultura”.
Teremos de começar hoje mesmo a construir as novas instituições que farão a humanidade evoluir, aproveitando a profunda transformação no domínio da comunicação que estamos a viver.»
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