15.8.20

O prazer indiscreto da orgia



«A curiosa entrevista de Durão Barroso ao “Observador” na semana passada tinha um só alvo: lembrar a sua própria existência. Há de facto quem, porventura sentindo um íntimo chamamento para se eternizar como mandante, não se consiga libertar dessa feroz ansiedade de preparar o próximo passo na trabalhosa escadaria do poder. No caso de Barroso, a presidência da República em 2026 é um apetite motivador, pese embora a inconsistência da ambição, pois é mais provável que, uma vez estrangeirado e esquecido, esquecido continue, ou que, se for lembrado, o seja precisamente pela razão que torna implausível que a direita vá requisitar a sua candidatura.

No entanto, a entrevista tem um picante suplementar, a frase que veio a ser mais citada, que a União Europeia despejou uma orgia de dinheiro para cima dos coitados da pandemia. É uma revelação curiosa de um modo de ver e, mesmo ignorando outras conotações, algo desapontante. Lagarde, mais profissional, reconhecia que a dotação do plano de recuperação foi muito menos do que o necessário; o Governo alemão, mais enérgico, determinou um plano nacional que dobra o do total do Conselho Europeu. Não sei se, no caso, o termo orgia quer dizer uma inundação, ou se se referia à multiplicação de pecados que esta tornaria possível. Mas, de uma forma ou outra, nem é demais nem se sabe ainda como vai ser usada.

Em contrapartida, há mesmo uma orgia a decorrer e dela Barroso sabe o suficiente. No segundo trimestre do ano, os grandes bancos internacionais de investimento, ou seja, alguns dos maiores operadores financeiros, viveram uma rara prosperidade: os seus resultados foram os maiores desde a grande crise de 2008 e o dobro dos do mesmo trimestre de 2019. Para o Citibank, o Goldman Sachs e o JP Morgan, os lucros de negociação de títulos subiram 70%. A explicação é simples, as emissões de dívida provocadas pela evolução inicial das bolsas, pela recessão covid e mesmo pelo alto nível de endividamento das empresas antes da nova crise foram gigantescas, 5,4 biliões de dólares, um terço dos quais nos Estados Unidos (o que, no caso, equivale a 5% do total das obrigações empresariais no mundo). Essas emissões garantem um confortável lucro para os agentes financeiros, mais 56%. Ao mesmo tempo, estes três bancos, com o Wells Fargo, são obrigados a constituir elevadas provisões para os riscos de crédito (mais 30 mil milhões de dólares no segundo trimestre, depois de 20 no primeiro), e por isso o resultado final dependerá dos efeitos prolongados da recessão e de como estes monstros financeiros equilibram as suas carteiras de crédito e as suas operações especulativas. Para já, estão felizes: o Goldman Sachs, o banco presidido por Barroso, melhorou neste período os seus resultados em 41% e aumentou os seus salários e compensações em 35% (o lucro para os acionistas só subiu 2%, é a vida). Isto é que é uma orgia, não acha?»

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