Texto de Júlia Matos Silva
Depois de trabalhar quase trinta anos na IBM, Júlia Matos Silva dedicou-se à realização de um projecto de reinserção social no Casal Ventoso. Actualmente é escritora, tendo ganho o «Prémio Miguel Torga Cidade de Coimbra 2000» pelo seu romance A Noite Americana (Palimage, 2001).
Tenho uma forte relação de amizade e cumplicidade com a Joana Lopes, desde o início dos anos 70. Não posso deixar de espelhar aqui o meu apreço pelo seu livro «Entre as Brumas da Memória – Os católicos portugueses e a ditadura», não só pela relevância das matérias tratadas, mas também pela qualidade e clareza da sua escrita.
Foi com grande entusiasmo e curiosidade que acompanhei o projecto da Joana. Num tempo em que a ideologia dos tempos livres arrasta as pessoas para a voragem dos prazeres que ajudam a derrotar o tempo, é gratificante encontrar alguém que se empenha em transmitir o testemunho de uma fase importante do seu passado individual e colectivo.
Em primeiro lugar, interessa salientar que a Joana soube aproveitar «o espaço mental e afectivo» que a vida lhe proporcionou para encontrar o tempo de nos revelar marcas relevantes da história da oposição ao regime salazarista, na década de 60.
Interessa ainda enaltecer a clarividência e rigor que depositou na missão difícil e sensível de «ilustrar com experiências e percursos colectivos», um importante período da luta dos católicos portugueses na oposição ao regime político vigente e às posições oficiais da Igreja Católica. Com este livro, católicos e não católicos devem congratular-se por lhes ser desvendada uma época histórica do seu próprio passado.
Assim que o livro me caiu nas mãos descobri uma nova luminosidade sobre uma época onde tantos combateram de diferentes formas a realidade mais incontornável que os cercava – a natureza arbitrária e desmerecida de um regime claustrofóbico e ditatorial.
Vivi com intenso afecto, a forma como ela própria se pensa e nos desvenda e ajuda a reflectir sobre uma esfera cultural e civilizacional à qual pertenci activamente, embora noutros moldes intelectuais, porque desprovida de convicções religiosas.
Senti, como se fosse minha, a dimensão simbólica do preço dos «íntimos e públicos sofrimentos» a que Pedro Tamen se refere quando, no prefácio, traça o movimento paradoxal da fidelidade a um grupo de pertença e nos alerta para a historicidade da trama dos acontecimentos e para o «aparente fim das histórias» sem fim. E eu sei como é perigoso sentir com muita intensidade… é perigoso para nós próprios e para aqueles que nos rodeiam!
A Joana Lopes consegue encontrar a exposição apropriada para revelar a singularidade dos eventos que narra, sabendo colocar-se, como dizia Jacques Derrida, no papel de «guardião de uma herança diferenciada, mas comum».
Para além de ressuscitar os acontecimentos, a escrita da Joana Lopes soube movimentar as memórias de um meio que, também ele, era tudo menos homogéneo. E soube acrescentar outras visões àqueles que, como eu, não caminhavam na proximidade espacial e temporal dos católicos.
Causou-me alguma inquietante perplexidade o facto de eu própria ter vivido aqueles tempos, com um desconhecimento fatal sobre a intensidade e o valor dos factos revelados neste livro. A minha condição de não crente talvez me tenha inibido de olhar para além do que era por mim (e por outros como eu) sentido e vivido naquela época, face ao meu país e ao mundo. O resultado das práticas religiosas e da consequente depauperação intelectual que eu via acontecer à minha volta, naquele tempo, não me permitiu descobrir a existência de tantas pessoas que lutavam dentro do sistema. Julgo mesmo que vivi numa era em que o fardo da vivência obscurantista nos fazia esquecer e até recusar o conhecimento teórico da existência de figuras da laicidade religiosa que, ao longo da história, lutaram pela justiça social.
Não posso deixar de confessar que, mesmo ainda hoje, da acção dos chamados católicos progressistas, eu apenas conhecia sobretudo a exigência utópica do episódio da «Capela do Rato», o papel do Centro Nacional de Cultura e de O tempo e o Modo, as posições individuais dos padres católicos e de alguns nomes significantes e o simbolismo vigoroso da figura do Bispo do Porto.
O condicionamento histórico e familiar do espaço emocional em que nasci, tão dominado pela observação osmótica da figura mítica de um pai agnóstico, anticlerical e anti-salazarista, nunca me conduziu à religiosidade em qualquer das suas formas e sempre me alertou ou protegeu contra o sistema de valores vigentes, religiosos e políticos.
Na minha infância e adolescência, o meu berço foi um nicho ecológico onde primava a luta contra um destino entorpecedor – tão largamente imposto pelas hierarquias políticas e religiosas e pelo sistema educativo (com a excepção rara de alguns professores notáveis). Assim, nas décadas de 40 e 50 e na cidade de província onde cresci, os meus pais fizeram questão de me aliviar das matérias de fé. Centraram a educação dos filhos em dois grandes pólos: despertar-lhes o gosto e o prazer pelas leituras múltiplas e apaixonantes e inculcar-lhes uma forte crença na mitologia activa da cultura humanista, despojada de uma ordem transcendente mas cheia de balizas éticas e morais.
De tudo isto, fiquei apta a acolher a alteridade do outro e a compreender que, em cada momento, esse outro é ele e a sua circunstância. Encontrei sobretudo as razões para compreender o homem na sua totalidade mais profunda quer ele seja habitado por um Deus ou por sucessivos Deuses dos Deuses ou viva os desígnios de um ateísmo militante.
E assim fui ficando até hoje, vivendo o desamparo da improbabilidade de Deus! George Steiner afirma que «o Deus da utopia é um deus cioso» ... e eu vivi, desde sempre, na teimosia de que o deus da minha utopia não tem Deus, tem apenas o homem e a sua própria morte.
E sei que sou, como a Joana, herdeira e sobrevivente de tantas coisas, boas e terríficas que preencheram a nossa geração.
Tenho uma forte relação de amizade e cumplicidade com a Joana Lopes, desde o início dos anos 70. Não posso deixar de espelhar aqui o meu apreço pelo seu livro «Entre as Brumas da Memória – Os católicos portugueses e a ditadura», não só pela relevância das matérias tratadas, mas também pela qualidade e clareza da sua escrita.
Foi com grande entusiasmo e curiosidade que acompanhei o projecto da Joana. Num tempo em que a ideologia dos tempos livres arrasta as pessoas para a voragem dos prazeres que ajudam a derrotar o tempo, é gratificante encontrar alguém que se empenha em transmitir o testemunho de uma fase importante do seu passado individual e colectivo.
Em primeiro lugar, interessa salientar que a Joana soube aproveitar «o espaço mental e afectivo» que a vida lhe proporcionou para encontrar o tempo de nos revelar marcas relevantes da história da oposição ao regime salazarista, na década de 60.
Interessa ainda enaltecer a clarividência e rigor que depositou na missão difícil e sensível de «ilustrar com experiências e percursos colectivos», um importante período da luta dos católicos portugueses na oposição ao regime político vigente e às posições oficiais da Igreja Católica. Com este livro, católicos e não católicos devem congratular-se por lhes ser desvendada uma época histórica do seu próprio passado.
Assim que o livro me caiu nas mãos descobri uma nova luminosidade sobre uma época onde tantos combateram de diferentes formas a realidade mais incontornável que os cercava – a natureza arbitrária e desmerecida de um regime claustrofóbico e ditatorial.
Vivi com intenso afecto, a forma como ela própria se pensa e nos desvenda e ajuda a reflectir sobre uma esfera cultural e civilizacional à qual pertenci activamente, embora noutros moldes intelectuais, porque desprovida de convicções religiosas.
Senti, como se fosse minha, a dimensão simbólica do preço dos «íntimos e públicos sofrimentos» a que Pedro Tamen se refere quando, no prefácio, traça o movimento paradoxal da fidelidade a um grupo de pertença e nos alerta para a historicidade da trama dos acontecimentos e para o «aparente fim das histórias» sem fim. E eu sei como é perigoso sentir com muita intensidade… é perigoso para nós próprios e para aqueles que nos rodeiam!
A Joana Lopes consegue encontrar a exposição apropriada para revelar a singularidade dos eventos que narra, sabendo colocar-se, como dizia Jacques Derrida, no papel de «guardião de uma herança diferenciada, mas comum».
Para além de ressuscitar os acontecimentos, a escrita da Joana Lopes soube movimentar as memórias de um meio que, também ele, era tudo menos homogéneo. E soube acrescentar outras visões àqueles que, como eu, não caminhavam na proximidade espacial e temporal dos católicos.
Causou-me alguma inquietante perplexidade o facto de eu própria ter vivido aqueles tempos, com um desconhecimento fatal sobre a intensidade e o valor dos factos revelados neste livro. A minha condição de não crente talvez me tenha inibido de olhar para além do que era por mim (e por outros como eu) sentido e vivido naquela época, face ao meu país e ao mundo. O resultado das práticas religiosas e da consequente depauperação intelectual que eu via acontecer à minha volta, naquele tempo, não me permitiu descobrir a existência de tantas pessoas que lutavam dentro do sistema. Julgo mesmo que vivi numa era em que o fardo da vivência obscurantista nos fazia esquecer e até recusar o conhecimento teórico da existência de figuras da laicidade religiosa que, ao longo da história, lutaram pela justiça social.
Não posso deixar de confessar que, mesmo ainda hoje, da acção dos chamados católicos progressistas, eu apenas conhecia sobretudo a exigência utópica do episódio da «Capela do Rato», o papel do Centro Nacional de Cultura e de O tempo e o Modo, as posições individuais dos padres católicos e de alguns nomes significantes e o simbolismo vigoroso da figura do Bispo do Porto.
O condicionamento histórico e familiar do espaço emocional em que nasci, tão dominado pela observação osmótica da figura mítica de um pai agnóstico, anticlerical e anti-salazarista, nunca me conduziu à religiosidade em qualquer das suas formas e sempre me alertou ou protegeu contra o sistema de valores vigentes, religiosos e políticos.
Na minha infância e adolescência, o meu berço foi um nicho ecológico onde primava a luta contra um destino entorpecedor – tão largamente imposto pelas hierarquias políticas e religiosas e pelo sistema educativo (com a excepção rara de alguns professores notáveis). Assim, nas décadas de 40 e 50 e na cidade de província onde cresci, os meus pais fizeram questão de me aliviar das matérias de fé. Centraram a educação dos filhos em dois grandes pólos: despertar-lhes o gosto e o prazer pelas leituras múltiplas e apaixonantes e inculcar-lhes uma forte crença na mitologia activa da cultura humanista, despojada de uma ordem transcendente mas cheia de balizas éticas e morais.
De tudo isto, fiquei apta a acolher a alteridade do outro e a compreender que, em cada momento, esse outro é ele e a sua circunstância. Encontrei sobretudo as razões para compreender o homem na sua totalidade mais profunda quer ele seja habitado por um Deus ou por sucessivos Deuses dos Deuses ou viva os desígnios de um ateísmo militante.
E assim fui ficando até hoje, vivendo o desamparo da improbabilidade de Deus! George Steiner afirma que «o Deus da utopia é um deus cioso» ... e eu vivi, desde sempre, na teimosia de que o deus da minha utopia não tem Deus, tem apenas o homem e a sua própria morte.
E sei que sou, como a Joana, herdeira e sobrevivente de tantas coisas, boas e terríficas que preencheram a nossa geração.
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