11.5.07

Fátima 1967 - A visita polémica de um Papa


Paulo VI com a irmã Lúcia (13/5/1967)
(Postal da época)


Há quarenta anos, era grande a consternação nas hostes dos chamados «católicos progressistas» portugueses. Desde que se levantou a hipótese de Paulo VI vir a Fátima em Maio de 1967, para as comemorações do 50º aniversário das aparições, que se temia que essa visita funcionasse como uma quebra do isolamento internacional a que Portugal estava sujeito, sobretudo desde o início da guerra em África, e como um aval às orientações políticas do governo português.

Em Entre as brumas da memória..., dedico um capítulo não só a esta viagem de Paulo VI como a outras que tiveram a ver com Portugal, nomeadamente à sua ida a Bombaim, que Salazar considerou uma afronta inaceitável (por causa da anexação pela União Indiana, alguns anos antes, de Goa, Damão e Diu). Deixo aqui um extracto desse capítulo (pp. 52-56):

«Na segunda metade do ano de 1966, começou a ser ventilada a hipótese de Paulo VI se deslocar a Fátima por ocasião do cinquentenário das aparições, em 13 de Maio de 1967.
Em Novembro de 1966, a Conferência Episcopal dirigiu-lhe um convite formal nesse sentido, mas só em 1 de Maio de 1967 é que foi oficiosamente comunicada a decisão definitiva à embaixada de Portugal no Vaticano. (...)

Já há algum tempo que os que se tinham alegrado com as viagens a Jerusalém, a Bombaim e à ONU temiam que a vinda a Fátima se concretizasse. (...)
Mas já que a vinda do papa se apresentava como inevitável, havia que recorrer à imaginação e tentar tirar partido de uma situação de facto. E o tempo era muito escasso.
Foi entregue na Nunciatura uma carta que um dos filhos do Coronel Varela Gomes escreveu ao papa, pedindo-lhe que intercedesse pela libertação do pai que se encontrava preso pela PIDE. Terá havido fuga de informação por parte da Nunciatura: segundo Maria Eugénia Varela Gomes, o
Correio da Manhã publicou, alguns dias mais tarde, um artigo em que o conteúdo da carta foi mencionado e distorcido. No entanto, ela crê na eficácia da iniciativa, já que está convencida de que à mesma se ficou a dever a redução das medidas de segurança a que o marido estava sujeito, de um ano e meio para seis meses.
(...) José Manuel Galvão Teles e eu pertencíamos à Junta Central da Acção Católica e essa condição abria-nos muitas portas. Decidimos pedir uma audiência particular ao Núncio Apostólico. Audiência concedida, apresentámo-nos, juntamente com Nuno Teotónio Pereira, e expusemos as nossas preocupações sobre o que nos parecia inevitável: o aproveitamento da visita do papa para fins políticos favoráveis ao regime. Insistimos na importância de tudo ser feito para o evitar. Fomos tão incisivos quanto soubemos. (...)

Aproximava-se o dia 13 de Maio. Soube-se que o Vaticano tinha “despolitizado” a viagem: o papa não viria a Lisboa (o avião papal aterraria em Monte Real), não condecoraria ninguém (em Bombaim, o presidente da União Indiana tinha recebido a mais alta condecoração concedida pelo Vaticano a não cristãos), não seria hóspede do governo mas sim do bispo de Leiria.
Sabe-se agora que, cerca de uma semana antes da viagem, o governo recebeu uma informação da Embaixada de Portugal em Madrid, segundo a qual se preparavam atentados contra personalidades portuguesas de vulto e contra o próprio papa. De Nova York, terá vindo uma outra notícia dizendo que um grupo de oficiais estava a organizar um golpe de estado contra Salazar. Estes boatos obrigaram a um reforço das medidas de segurança em Fátima, impedindo, por exemplo, que Paulo VI fizesse alguns percursos a pé, como inicialmente previsto.

Entretanto, em Lisboa, continuavam os protestos.
Foi preparada uma iniciativa importante: a elaboração de um documento altamente sigiloso, a fazer chegar directamente ao papa, no qual um numeroso grupo de antigos e então actuais dirigentes da Acção Católica e de outras organizações de leigos, que como tal se identificavam individualmente a seguir à respectiva assinatura, informavam detalhadamente Paulo VI da situação existente em Portugal, por eles considerada contrária aos ensinamentos da Igreja e do próprio papa. Havia que garantir que o documento fosse entregue em boas mãos. Alguém nos disse que a pessoa a ser procurada em Fátima era Monsenhor Loris Capovilla, que tinha sido secretário particular do papa João XXIII e que integraria a comitiva de Paulo VI. E foi assim que o nosso livre trânsito, como convidados oficiais por sermos membros da Junta Central da Acção Católica, permitiu que encontrássemos Capovilla e que José Manuel Galvão Teles lhe entregasse a carta. (...)

Nos bastidores do poder, passaram-se episódios que só muito mais tarde viemos a conhecer. Com a aversão que tinha a Paulo VI e com a sua proverbial misantropia, Salazar ficou furioso quando soube, na véspera das comemorações e já em Monte Real, que o Papa queria que a irmã Lúcia estivesse presente, porque considerou tratar-se de um acto puramente demagógico. Ameaçou mesmo regressar imediatamente a Lisboa, mas acabou por ficar – no Hotel de Monte Real, onde a estadia, com meia pensão, custou 220$00.
Confessaria no dia seguinte que o que mais apreciara na visita do Papa fora a fúria que ela provocara nos seus inimigos.

As cerimónias decorreram em Fátima com toda a pompa e emoção generalizada, na presença de mais de um milhão de pessoas. Os membros da Junta Central da Acção Católica foram convidados privilegiados, juntamente com as autoridades civis e eclesiásticas, e estiveram por isso presentes, como tinham exigido, na tribuna de honra, erguida em frente da Basílica. Foi estranho ver, a poucos metros de distância, Américo Tomás, Salazar, a irmã Lúcia e o papa, quando desejávamos tanto que tudo aquilo não estivesse a acontecer, que não passasse de um simples pesadelo.
Entretanto, Paulo VI foi almoçar, recatadamente. Como tinha pedido: sopa, frango, um pouco de vinho tinto e um cálice de Porto.
Recebeu-nos mais tarde, numa das muitas audiências que se seguiram às cerimónias religiosas.
Tínhamos feito o que pareceu ser possível – e que foi bem pouco.
Nunca mais voltei a Fátima.

Para Franco Nogueira, “foi um dia de grande emoção popular, de grande espectáculo, de grande política para a ala conservadora da Igreja.”
Para os que não se incluíam nessa “ala conservadora”, as feridas estavam abertas e, para alguns, não se fechariam.(...)»

* * *

Como os leitores deste blogue se distribuem por grupos que dão para vários peditórios, deixo, aos eventuais interessados, os links para os discursos que Paulo VI fez em Fátima, em 12 e 13 de Maio de 1967:
* Discurso ao Presidente da República
* Discurso ao Corpo Diplomático
* Discurso ao Episcopado Português
* Discurso aos Representantes dos Leigos Católicos
* Discurso aos Representantes das Comunidades Cristãs Não Católicas
* Homilia durante a Missa no dia 13 de Maio
* Discurso de Despedida

4 comments:

cs disse...

Optimo documento histórico, pareceu-me.

:)

Anónimo disse...

Oportuníssima evocação. Mas onde se fala do jornal "Correio da Manhã" não se trataria do "Diário da Manhã" (a que então era uso mencionar-se como "Diário da Manha")?

João Tunes

Joana Lopes disse...

Tem toda a razão, João: é DIÁRIO DA MANHÃ!!! Obrigada.

Miguel Lima disse...

.... e contudo, o futuro veio dar razão ao Estadista de St.ª Comba Dão. As "independências" foram tão gostosas que os "escravos" têm optado por vir viver para junto dos seus amos, continuando o seu serviçal serviço. É vê-los a chegar às costas de itália e de Espanha em barcos de qualidade inferior à dos nossos Navegantes de quinhentos. Afinal, eles próprios repudiam as independências. Quanto aos católicos progressistas, o 25 de Abril tirou-lhes a pele de cordeiro e logo apareceram em partidos de inspiração socialista e totalitária, rancorosos q.b. e abortistas. Enfim uns autênticos judas fariseus.
Que Deus os ilumine.