25.11.07

«Rio das Flores» e «Rio de Sombras»


São semelhantes os títulos de dois livros que saíram quase ao mesmo tempo – um de Miguel Sousa Tavares (MST) e outro de António Arnaut (AA) (*). Mas não só os títulos os aproximam: ambos são romances que pretendem tratar de História através de histórias.

Sobre Rio das Flores, muito já foi escrito. Sobretudo depois da crítica, absolutamente arrasadora, que Vasco Pulido Valente fez no Público de 24/11, não apetece dizer muito mais.
Limito-me portanto a referir que, eu que gostei muito de Equador, me aborreci com a leitura de muitas das mais de seiscentas páginas deste novo livro. Sobretudo porque me ficou a impressão de que MST quis «aproveitar» («rentabilizar») o material que reuniu em três anos (?!...) de pesquisas, metendo-o à força em longas lições de história-contada-a-pobres-ignorantes, muito para além do que era adequado para uma contextualização correcta dos acontecimentos ficcionados. Não se percebe se quer aproveitar a História para contar uma história ou o contrário – senti isso permanentemente durante a leitura, o que é francamente desagradável.

Rio de Sombras aparece como um projecto bem mais modesto e, nessa exacta medida, mais conseguido. AA é um homem de outros ofício que não o de escritor, que resolveu deixar um romance que é, de facto, um livro de memórias ficcionadas. Nele percorre duas décadas da vida política portuguesa (a acção começa em 1968, na guerra colonial em Angola, e termina em 1988, simbolicamente com o incêndio do Chiado), através das vivências militantes e amorosas das suas personagens nos últimos anos do Estado Novo, no 25 de Abril, no PREC e nos anos que se seguiram «...em que as águas límpidas do sonho de Abril se transmudaram no lodo do desencanto, embora reste ainda uma nesga de esperança...» (**).

Encontramos os factos e as pessoas concretas (Soares, Cunhal, Sá Carneiro, muitos outros e até o próprio António Arnaut) relembrados, descritos e caracterizados com simplicidade. À medida que as histórias dos «heróis» do romance se vão desenvolvendo, aparecem os meandros das querelas políticas e partidárias.

AA pisca também o olho à maçonaria, mas aqui não abre a porta e é pena. Ele, que tão bem a conhece, podia ter-nos deixado entrar que não viria daí mal ao mundo – nem mesmo ao maçónico.

Literariamente, o estilo é demasiado rebuscado, pelo menos para meu gosto. Mas lê-se bem – eu li bem...

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(*) Miguel Sousa Tavares, Rio das Flores, Oficina do Livro, Lisboa, 2007, 632 p.
António Arnaut, Rio de Sombras, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, 376 p.

(**) A maior parte dos acontecimentos tem lugar em Coimbra, o que não é de somenos importância: julgo que, com a habitual sobranceria centralizadora, os lisboetas (nos quais me incluo por aculturação) nunca procuraram saber como foram vividos, concretamente, o 25 de Abril, o 1º de Maio de 74, o PREC e tudo o que se seguiu fora de Lisboa, do Alentejo (e de Rio Maior...).

1 comments:

Maria José Speglich disse...

Discordo de você. Achei Rio das Flores um minucioso trabalho de pesquisa histórica, que serve de pano de fundo a um enredo de amores, paixões, apego à terra e às suas tradições e, simultaneamente, à vontade de mudar a ordem estabelecida das coisas.
Altamente recomendável.