É este o subtítulo de um livro (*) que resultou de longas conversas à volta da mesa de vários jantares, entre quatro portugueses (três, mais rigorosamente, já que o quarto se naturalizou belga), todos nascidos na década de 40. Todos também emigrantes de longa duração, que começaram por recusar sobretudo a guerra colonial, que foram profissionalmente muito bem sucedidos no exílio e que optaram por continuar a viver até hoje fora do país, embora com ele mantenham ligações mais ou menos frequentes, conforme os casos e as diferentes fases da vida.
Antes de mais, importa realçar, positivamente, esta modalidade de narrativa de memórias em grupo, sob a forma oral, que serve bem os objectivos que os intervenientes se propõem: partilhar e discutir, detalhadamente, experiências e visões diferenciadas do mundo, da Europa e de Portugal, no passado e no tempo presente - longuíssimos diálogos que nos proporcionam uma leitura fácil e agradável, mas que deixam adivinhar que muitas e muitas horas de trabalho se passaram entre o gravador e o papel…
José Morais (neuropsicólogo), Manuel Paiva (físico), Jorge de Oliveira e Sousa (politólogo) e Amadeu Lopes Sabino (advogado) nunca chegam a encontrar-se com «Godinho» , o misterioso personagem que, ironicamente, está na origem do título ao livro. Dos quatro testemunhos, os dois mais interessantes são, no meu entender, o de José Morais que nos dá um fidelíssimo retrato das vicissitudes por que passou como membro do Partido Comunista (até dele sair e depois emigrar) e, principalmente, o de Amadeu Sabino.
Complexo é o percurso deste ex-PC, depois MRPP, UDP de passagem, hoje liberal assumido, europeísta com um entusiasmo que nem parece deixar lugar para quaisquer reservas quanto à actuação da Comissão Europeia (onde, aliás, é alto funcionário). O seu testemunho ilustra bem o que foi a segunda metade da década de 60, e o início da de 70, para uma parte significativa da juventude estudantil portuguesa, no caso concreto para a que foi seduzida pelo «maoísmo europeu» que era «uma utopia, uma ficção, que nada tinha a ver com o maoísmo chinês», mas que «exerceu uma força e um impulso imensos na revolução das mentes dos que o praticaram» (p. 298).
O seu depoimento está cheio de pequenas histórias, por vezes anedóticas, como é o caso das muitas páginas em que descreve a sua atribulada participação na revista O Tempo e o Modo. Para ela entrou em 1967, ainda sob a direcção de António Alçada baptista e João Bénard da Costa, e foi a peça fundamental na transição para o domínio da publicação pelo MRPP. Eu que pertenci à redacção da revista durante a chamada «primeira série», e que saí naturalmente quando se iniciou a segunda, voltei a reviver as cenas absolutamente dantescas de algumas discussões já então existentes e que Amadeu Sabino caracteriza na perfeição ao falar do que se seguiu, já na era MRPP: «Estou certo que muitas das reuniões da redacção (…) de O Tempo e o Modo (…) deixariam de boca aberta, pela sua bizantina vacuidade, os padres do Concílio de Niceia, que, afinal, se limitaram a discutir algo de tão concreto como o sexo dos anjos…» (p. 315).
Um denominador comum aos quatro participantes nos jantares é o facto de todos terem vivido intensamente, embora de modo diferente, «a vida perigosa» dos anos 60. Uma vez mais, é Amadeu Sabino que resume essa vivência, utilizando uma expressão que acaba por vir a ser utilizada como subtítulo do livro: «Era um tempo difícil mas que tinha uma enorme virtude: o futuro existia. Era então possível imaginar um mundo que recusasse a melancolia do cinzento e negro (…). Quem não experimentou essa época, não experimentou a alegria de viver» (p.301).
Um livro original e útil para quem queira conhecer – ou recordar – uma fase importante do nosso passado recente.
(*) Amadeu Lopes Sabino, Jorge de Oliveira e Sousa, José Morais e Manuel Paiva, À Espera de Godinho – Quando o futuro existia, Bizâncio, 2009, 392 p.
P.S. – Amadeu Sabino refere, na p. 307 do livro, uma artigo seu publicado, em 1969, na revista O Tempo e o Modo – «A irresistível ascensão dos liberais burgueses». Quem estiver interessado, pode encontrá-lo aqui.
(Publicado originalmente em Caminhos da Memória.)
Antes de mais, importa realçar, positivamente, esta modalidade de narrativa de memórias em grupo, sob a forma oral, que serve bem os objectivos que os intervenientes se propõem: partilhar e discutir, detalhadamente, experiências e visões diferenciadas do mundo, da Europa e de Portugal, no passado e no tempo presente - longuíssimos diálogos que nos proporcionam uma leitura fácil e agradável, mas que deixam adivinhar que muitas e muitas horas de trabalho se passaram entre o gravador e o papel…
José Morais (neuropsicólogo), Manuel Paiva (físico), Jorge de Oliveira e Sousa (politólogo) e Amadeu Lopes Sabino (advogado) nunca chegam a encontrar-se com «Godinho» , o misterioso personagem que, ironicamente, está na origem do título ao livro. Dos quatro testemunhos, os dois mais interessantes são, no meu entender, o de José Morais que nos dá um fidelíssimo retrato das vicissitudes por que passou como membro do Partido Comunista (até dele sair e depois emigrar) e, principalmente, o de Amadeu Sabino.
Complexo é o percurso deste ex-PC, depois MRPP, UDP de passagem, hoje liberal assumido, europeísta com um entusiasmo que nem parece deixar lugar para quaisquer reservas quanto à actuação da Comissão Europeia (onde, aliás, é alto funcionário). O seu testemunho ilustra bem o que foi a segunda metade da década de 60, e o início da de 70, para uma parte significativa da juventude estudantil portuguesa, no caso concreto para a que foi seduzida pelo «maoísmo europeu» que era «uma utopia, uma ficção, que nada tinha a ver com o maoísmo chinês», mas que «exerceu uma força e um impulso imensos na revolução das mentes dos que o praticaram» (p. 298).
O seu depoimento está cheio de pequenas histórias, por vezes anedóticas, como é o caso das muitas páginas em que descreve a sua atribulada participação na revista O Tempo e o Modo. Para ela entrou em 1967, ainda sob a direcção de António Alçada baptista e João Bénard da Costa, e foi a peça fundamental na transição para o domínio da publicação pelo MRPP. Eu que pertenci à redacção da revista durante a chamada «primeira série», e que saí naturalmente quando se iniciou a segunda, voltei a reviver as cenas absolutamente dantescas de algumas discussões já então existentes e que Amadeu Sabino caracteriza na perfeição ao falar do que se seguiu, já na era MRPP: «Estou certo que muitas das reuniões da redacção (…) de O Tempo e o Modo (…) deixariam de boca aberta, pela sua bizantina vacuidade, os padres do Concílio de Niceia, que, afinal, se limitaram a discutir algo de tão concreto como o sexo dos anjos…» (p. 315).
Um denominador comum aos quatro participantes nos jantares é o facto de todos terem vivido intensamente, embora de modo diferente, «a vida perigosa» dos anos 60. Uma vez mais, é Amadeu Sabino que resume essa vivência, utilizando uma expressão que acaba por vir a ser utilizada como subtítulo do livro: «Era um tempo difícil mas que tinha uma enorme virtude: o futuro existia. Era então possível imaginar um mundo que recusasse a melancolia do cinzento e negro (…). Quem não experimentou essa época, não experimentou a alegria de viver» (p.301).
Um livro original e útil para quem queira conhecer – ou recordar – uma fase importante do nosso passado recente.
(*) Amadeu Lopes Sabino, Jorge de Oliveira e Sousa, José Morais e Manuel Paiva, À Espera de Godinho – Quando o futuro existia, Bizâncio, 2009, 392 p.
P.S. – Amadeu Sabino refere, na p. 307 do livro, uma artigo seu publicado, em 1969, na revista O Tempo e o Modo – «A irresistível ascensão dos liberais burgueses». Quem estiver interessado, pode encontrá-lo aqui.
(Publicado originalmente em Caminhos da Memória.)
4 comments:
Que diria um jovem, se lesse (interpretasse) este post?
E viesse dizer aos mais velhos?
Claro que eu só gostava de matar a curiosidade, antes que ela me mate a mim!
Eu sou "jovem" (suponho que o critério seja "nascido depois de Abril") e li o post. Aliás, também já li o livro. E tirando o subtítulo, que me parece algo datado, devo dizer que gostei bastante. É sempre bom ler/ouvir gente que é capaz de integrar a política na vida, e vice-versa. O Godinho acaba por não chegar mas nós deliciamo-nos com uma série de histórias.
Claro que não só o subtítulo, mas os próprios testemunhos, são datados, como julgo que acontece com todas as «memórias».
Talvez todas as gerações tendam a situar-se como aquelas para quem «o futuro existia»... Parece-me natural.
Nem precisava de jovem entre aspas.
Mas pelo jovem Cardina já vi que está tudo calmo neste mundo e que muitos jovens de hoje olham para a geração de Antonio Lobo Antunes com o mesmo distanciamento como olham para a geração de Eça de Queiroz.
Deve ser o mais natural. Isto é, datados e na prateleira dos fundos.
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