12.9.10

Terra de juristas?


Quem teve filhos que passaram pela saga do acesso ao ensino superior público, nas últimas décadas,  dá sempre pelo menos uma vista de olhos às listas de colocações, à oferta e à procura, às notas mínimas para entrada nuns tantos cursos – é uma espécie de trauma que imprime carácter…

Deixando de lado o que se sabe imediatamente quanto a percentagens de sucesso, felizmente muito mais elevadas nos últimos anos, e quanto às tendências que se mantêm ao longo do tempo – os números relativos a Medicina e aparentados e a potenciais arquitectos e outros artistas – , há algumas outras realidades que não deixam de me impressionar.

Uma delas tem a ver com a diminuição crescente da procura de cursos na área das chamadas Humanidades, onde a oferta não é especialmente generosa e, mesmo assim, se entra com médias baixíssimas. Para dar apenas um exemplo que me é próximo, refira-se o curso de Filosofia, que foi tradicionalmente reputado por atrair gente especialmente interessada e com altas classificações no Secundário. Este ano a Clássica de Lisboa abriu 65 vagas, só preencheu 40 e o último aluno a entrar teve média de 10,65… Imagino o pesadelo que seria (será certamente para alguém…) ensinar hoje Lógica ou Teoria do Conhecimento a uma turma destas!

No extremo oposto, Direito intriga-me e, por mais que tente, não consigo interpretar o fenómeno do número de vocações para juristas neste país. Sabendo-se à partida que a maioria esmagadora dos que chegam a entrar não arranjará ocupação adequada à saída, que nem sequer tem a hipótese de emigrar usando o canudo que eventualmente possa levar debaixo do braço porque não há diploma menos «internacionalista», e que o destino mais provável é um Call Center ou uma caixa num hipermercado, por que mágica razão se esgotam as mais de 1.000 vagas abertas em Lisboa, Coimbra e Porto, sendo exigidas médias que vão de 14 a quase 17, o que significa que muitos candidatos ficaram à porta e irão amanhã matricular-se na Católica ou em privadas? Um verdadeiro enigma que não sei se deva ser interpretado como uma vertente masoquista dos nossos jovens ou se é, bem pelo contrário, uma nova forma de espírito missionário de quem nasceu e cresceu a ouvir dizer que é preciso salvar a Justiça…

P. S. – A propósito da média muito baixa que referi para o último colocado em Filosofia, surgiu na Caixa de Comentários a mais do que legítima hipótese de o 40º ser uma excepção e os outros poderem ter excelentes notas, precisamente por se tratar de uma licenciatura com um público especial.
É o tipo de desafio a que não resisto e analisei-os um a um. Conclusão sumária:
- Não há médias excepcionais: um 16, dois 15, seis 14.
- Sobretudo: só para 16 candidatos, Filosofia é a primeira opção. Para 15 deles, é 4ª, 5ª ou 6ª, o que significa que alguns nem virão a inscrever-se naquele curso, optando por universidades privadas (curiosamente, para vários, Direito era a 1ª opção…)

Aproveito para mais uma informação: na primeira metade da década de 60, quando no país havia menos de 25.000 estudantes universitários (ao todo, sim, em Lisboa, Porto e Coimbra), Filosofia tinha, em valor absoluto, mais alunos do que actualmente.

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26 comments:

Shyznogud disse...

Não querendo ser advogada do diabo, Joana, uma coisa q já percebi ao olhar com atenção para as notas de entrada é q muitas vezes a média do último classificado está muito longe de descrever o grosso dos entrados no curso X ou Y. Lembro-me de, há uns 2 ou 3 anos, ter andado a espiolhar os entrados num qqr curso de Física cuja média do último entrado era miserável... contudo, a grande percentagem dos q tinha escolhido tal curso tinham médias altíssima, eram, aposto, geeks típicos. Ou seja, tirando os cursos em q a entrada se faz com médias muito elevadas - e q têm, por isso, um grupo de estudantes muito homogéneo - para se tirar alguma conclusão teremos q analisar, curso a curso, as notas de todos os entrados.

Joana Lopes disse...

Por acaso, pensei nessa hipótese a propósito de Filosofia - vou tentar ver. Seja como for, sobraram 25 em 60 vagas, o que é significativo de pouco interesse.

Shyznogud disse...

Ah! Sim, isso é claro. Por acaso, em relação ao caso concreto da Filosofia, tenho falado com alguns putos q me dizem q é um dos, e cito, "cursos ideais para se fazer depois, como segundo curso".

(é fácil observar as notas curso a curso no site onde estão os resultados das candidaturas)

Joana Lopes disse...

Não encontrei a distribuição deste ano mas aqui está a do ano passado, que pode ser semelhante.

Shyznogud disse...

é neste link mas dá trabalho ver um a um http://www.dges.mctes.pt/coloc/2010/col1listaredir.asp

Joana Lopes disse...

Já percebi que dá, mas como (tb) sou nhurra, vou fazer :-)

Shyznogud disse...

oh god, porque é q não sei ficar calada? eheh

Vitor M. Trigo disse...

Por acaso participei num estudo recente sobre este assunto.
O objectivo é cruzar o que os alunos, professores, e mercado pensam acerca das oportunidades de 1º emprego e desenvolvimento de carreira. Dominio: Universidade Técnica de Lisboa.

Do que extraí, e que tem ainda de ser validado com os professores, a fim de obter deles o compromisso de cooperação nos debates com os alunos, relevo o seguinte:
1. o incrível número de alunos que esperam ser "investigadores";
2. A renúncia a virem a trabalhar numa PME;
3. A esperança de virem a "entrar" numa multinacional ou numa PSI20;
4. A segunda opção é a FP.


Não vale a pena alongar.
Dá para ver como alunos e professores estão tão distantes do mercado.
Esta é uma das razões porque aproveito todas as oportunidades de colaborar (graciosamente) com a Academia.
Pode ser que possa dar uma ajuda.

Joana Lopes disse...

Já vi os resultados para os 40 colocados. Em breve porei um P.S. no post e aviso aqui... :-)

Joana Lopes disse...

Já está posto o P.S.

Shyznogud disse...

Voltei a fazer o exercício no curso de Física da Faculdade de Ciências de Lisboa. Nota do último entrado 11 e qqr coisa mas... há apenas 4 alunos com médias inferiores a 13 e, por comparação, 5 com médias superiores a 17.

Palmira F. da Silva disse...

Se tivesses feito o exercício para a Física tecnológica no Técnico tinhas encontrado um panorama completamente diferente :)

As vagas, 60, foram todas preenchidas e a nota mínima de acesso foi 17,2, a nota média dos 60 18,1.

Ainda não tenho a análise por curso, mas no global, 70 % dos alunos escolheram o par curso/IST em 1ª opção e dos restantes, 66% colocaram algum curso do Técnico em 1ª opção.

A Monte disse...

Concorri ao ensino superior, História na Nova - 1ªOpção ( entraria em qualquer uma das outras opções que coloquei). Mas já é o meu segundo curso, há 18 anos atrás, fui pela via da empregabilidade. Agora pela vocação!
A pressão exercida pela família, pela sociedade condiciona as nossas escolhas, no meu caso não soube defender o meu futuro.
O processo pelo que passei agora, foi mais consciente, analisei várias opções, planos curriculares, etc. Será, que todos os candidatos analisam o curso e projectam o futuro com base nessa decisão ou o que interessa é entrar ( para qualquer lado)? Na minha opinião, há uma formatação deste processo que deveria ser revisto.

Joana Lopes disse...

Palmira, O caso que descreves é mais do que excelente! Haverá vários em áreas de ponta,científicas / tecnológicas, não nas Humanidades «clássicas» - inevitável, na minha opinião.

Joana Lopes disse...

A Monte, o seu caso é exemplar e mostra bem a diferença na escolha de um segundo curso (de que a Shyz falou ali para cima).
Mas eu sou dos que acho que a empregabilidade não pode / não deve ser menosprezada. Se tivesse um filho que quisesse agora ir para Direito só «porque sim», sem notas elevadas e vocação definida, faria tudo para o fazer mudar de ideias.

Joana Lopes disse...

Um outro ponto de vista. Nuno Crato:
«Estude-se algo amplo, mas com conteúdo. Estude-se história, ou matemática, ou português, ou direito, e pense-se que o futuro tem muitas surpresas. Mas não se estudem cursos tão especializados ou tão genéricos e com tão pouco conteúdo básico que com eles poucas perspectivas se abram ou neles pouco se aprenda.»

A Monte disse...

Concordo consigo Joana, sem vocação definida e sem notas é um erro.

Por isso penso que esta forma de acesso não é a correcta, apesar de existir muita informação disponível.
Os miúdos escolhem este ou aquele curso, sem pensar muito bem. O fim do curso parece longe. Arranjar ou não, trabalho também. E por vezes somos nós pais/educadores que falhamos, como diz a Joana, não os ajudamos a descobrir a sua vocação, não os incentivamos na procura de alternativas!

lpb disse...

A crónica do Nuno Crato alude a uma mundivisão datada, lamento dizê-lo.

Os polímatas e os filómatas estão extintos há muito. Basta falar com os alunos de MBAs e a linguagem do márketing, do prófit, do timbildingue e outras banalidades associadas. O modelo pedagógico associado ao teste, à competição e à média aritmética institucionaliza um determinado tipo de incentivos, promove um determinado tipo de comportamento.

Oiço falar destas questões e lembro-me da Universidade de Middlesex, cujo departamento de Filosofia ainda não fechou porque as estrelas da filosofia crítica assinaram uma petição. Entretanto, em Notre Dame, o departamento de economia política, o mais importante bastião da economia heterodoxa nos EUA, fechou.

Aqui, os juristas e jurisconsultos, produzidos na FDL e na Independente, modelam o discurso público e jurisdicionalizam a realidade.

Como costumo dizer: depois de vocês (juristas, economistas e gestores) desaparecerem, ainda cá estarei eu (historiador) a rir-me da da vossa hybris.

Miguel Cardina disse...

O curso de Filosofia em Coimbra teve sina idêntica: preencheram-se metade das vagas e o último a entrar teve... 10,00.

A baixa dessa nota não é de agora, mas tem-se acentuado. Quando entrei no curso, em 1996/97, o último a entrar teve 14,5...

Mas apetece-me colocar dois matizes na conversa, ainda que concordando genericamente com o que dizes:

1. Melhores notas no secundário não significa maior interesse cultural ou disponibilidade para aprender. Pude vê-lo: os melhores alunos do meu curso não foram de todo aqueles que entraram com melhores médias;

2. O facto de alguém que termine o secundário poder estudar Filosofia se quiser não me parece algo de negativo. O mais estranho é mesmo é desinteresse na disciplina (o que nos levaria ao corpo docente, à imagem elitista e autocentrada da disciplina e dos seus praticantes, ao culto da dificuldade que muitas vezes anda a par com o provincianismo e a ignorância. Tive excelentes professores mas a maioria enquadraria no "medíocre"... alguns abaixo de 10,00).

Mas então: o desinteresse pela disciplina. Parece-me ser, em última análise, o retrato mais claro e radical do desinteresse pelas Humanidades. Daí que na FLUC as notas do último/a a entrar em Jornalismo, Estudos Europeus ou Turismo, Lazer e Património sejam bem mais altas. Não se trata de dizer que existem cursos mais nobres do que outros; apenas estranho que, depois, muitos alunos/as se disponham a querer fazer mestrados e doutoramentos em Filosofia ou História das Ideias e se apercebam, porventura tarde demais, que o discurso da "saída profissional" é na maioria das vezes uma fantochada.

As universidades, que andam à procura de dinheiro, exploram-no o melhor que podem; os pais, que ouvem demais a sociedade, tentam convencer os filhos; e estes, ou estudam o que gostam ou mais tarde ou mais cedo, aí sim, vão acabar no call center.

Joana Lopes disse...

lpb,
Também acho o que Nuno Crato diz absolutamente datado. Pu-lo aqui por vir a propósito e porque esbarrei com ele esta manhã.

Joana Lopes disse...

Miguel,

Levantas várias questões.

De acordo quanto a 1.

Relativamente a 2., estou hoje demasiadamente longe dos meios académicos, mas fui agora ver a lista de docentes de Filosofia em Lisboa e, pelos nomes que conheço, é bem melhor do que quando eu lá dava aulas…

Os tempos são outros e ainda ninguém frisou aqui um aspecto que me parece o essencial: o desprestígio a que a carreira de professor chegou e que era aquela a que a grande maioria de quem escolhia Filosofia, ou outras Humanidades ditas «Clássicas», se destinava - com gosto. Não sei o que espera quem faz mestrados ou doutoramentos nestas áreas, mas, ou entra numa estreitíssima porta de carreira universitária ou…? Vai de bolsa em bolsa até à reforma? Para quantos, por exemplo, investigação em Filosofia, em Portugal?

Neste contexto e com os pés na terra, não entendo bem esta tua frase: «o discurso da "saída profissional" é na maioria das vezes uma fantochada», nem esta: «estes [os filhos], ou estudam o que gostam ou mais tarde ou mais cedo, aí sim, vão acabar no call center».

Miguel Cardina disse...

Joana:
Quero dizer que uma pessoas pode fazer muitas coisas na vida, e que um curso é só um curso. Dele devemos esperar sobretudo conhecimento e abertura de perspectivas, não umas palas e um canudo.

Shyznogud disse...

Joana, lamento desiludi-la mas não tem razão nenhuma naquilo q considera essencial, a saber o desprestígio da carreira de professor não é deste campeonato. Qdo eu entrei para a faculdade, e já lá vão muitos anos, o nosso "cenário de pesadelo" - de todos - era o ser professor (eheh apesar de ser esse o destino da maioria). Ou seja, se houve uma altura em q qm ia para Humanidades o fazia na perspectiva de ter, com gosto, uma carreira de professor, esses tempos já acabaram, pelo menos, em meados dos anos 80. Não é por aí...

Por outro lado, se houve coisa q o ser mãe de uma recém universitária me ensinou, nas longas conversas q tivemos sobre o tema "curso a escolher", foi q, como o Miguel diz, um curso é apenas um curso, qtas vezes sem nada a ver com o percurso profissional que se segue. Houve uma alteração brutal neste aspecto nos últimos anos, até porque estamos perante gerações a qm é alheio o conceito "emprego para a vida", certo?

Joana Lopes disse...

Shyz,

De acordo quanto à 1ª parte: estava a pensar em décadas anteriores à de 80. Com a (excelente) explosão do ensino a seguir ao 25A, as coisas mudaram.

Quanto ao resto, não estava de todo a pensar no «emprego para a vida» (totalmente de acordo que acabou e não há mal nenhum nisso, antes pelo contrário), mas sim à saída do Superior. E, aí, conheci / conheço muitos dramas na geração dos 30 e poucos (a do meu filho): tirando os casos de alunos excepcionais (ou com boas cunhas, claro...), quem escolheu cursos com pouca saída está ainda à rasca, nos tais C. Centers, em Angola ou na Argélia por necessidade, ou mais ou menos à custa dos pais. E não consigo menosprezar esta realidade versus o que interessa é (apenas) escolher aquilo de que se gosta.

Miguel Cardina disse...

Joana,

Mas hoje em dia não há curso nenhum que garanta um futuro. Uns terão mais "saída" do que outros, mas nem Medicina é certo. Conheço casos de jovens médicos que estão com contratos precários e a ter de ir para longe de casa. E esta área é, porventura, a excepção. Tudo o resto é pior, muito pior, a um nível em que a incerteza (ou a cunha) é que tomam a primazia. Assim sendo, porque não optar pela «vocação»?

Joana Lopes disse...

Tudo bem, Miguel, és capaz de ter razão. Eu só me fiz eco de muitos «arrependimentos» e «lamentos» que tenho ouvido nos últimos 10 anos, de gente da tua idade...