31.1.12

Vindos dos antípodas



Fui buscar alguns elementos do texto que escrevi ontem, a propósito dos 90 anos de Nuno Teotónio Pereira, a um post que publiquei em 2008, em resultado de uma longa conversa que tive com ele e com Edmundo Pedro e da qual guardo mais de duas horas de gravação.

O eco que o post de ontem teve em vários sites, blogues e Facebook leva-me a «repescar» uma parte da dita conversa, pelo eventual interesse em recordar, ou dar a conhecer, alguns etapas das juventudes tão extraordinariamente diferentes destas duas pessoas – que hoje são amigas e muito se respeitam mutuamente.

Nuno Teotónio Pereira (NTP) nasceu no ano em que Mussolini organizou a célebre marcha sobre Roma, que o conduziria à chefia do governo italiano (1922), Edmundo Pedro (EP) três dias antes do fim da I Guerra Mundial (1918). Embora tenham hoje posições muito semelhantes sobre o mundo e sobre a vida, chegaram a este mundo em contextos que dificilmente podiam ter sido mais distintos.

EP veio do meio operário, tinha seis anos quando o pai foi deportado para a Guiné por actividades subversivas e aderiu muito cedo ao Partido Comunista. NTP nasceu numa família burguesa, conservadora, monárquica e católica.

Curiosamente, a vida viria a «reuni-los», durante a adolescência, num mesmo quarteirão de Lisboa – facto que só descobriram na conversa que tiveram comigo. Com efeito, EP frequentou a escola industrial Machado de Castro, nas traseiras do liceu Pedro Nunes, onde NTP fez todo o secundário. Pelas minhas contas, terão coabitado assim, sem o saberem, paredes-meias mas de costas bem voltadas, durante dois ou três anos. «Via os vossos desafios de futebol, era o campo que separava as nossas escolas», lembra EP. «Havia uma diferença de classes bem visível», comenta NTP: «o meu liceu dava para uma bela e larga avenida, a tua escola para uma rua estreita e feia».

Li-lhes excertos de textos que escreveram sobre o que foi, para cada um, o ano de 1936.

Em Fevereiro, EP, então com dezassete anos, foi preso pela terceira vez. Passou algum tempo numa esquadra em Benfica, foi transferido depois para o Aljube e mais tarde para Peniche. NTP continuava no Liceu Pedro Nunes e, em Maio desse mesmo ano, viveu intensamente a criação da Mocidade Portuguesa:

«Com alguns colegas do liceu, logo corremos a uma loja da Rua das Portas de S. Antão para comprarmos as fardas. (…) A partir dai, fiz uma carreira fulgurante na Mocidade, envergando orgulhosamente o uniforme com a camisa verde e o S de Salazar na fivela do cinto, e participando nas marchas pela Avenida da Liberdade abaixo fazendo a saudação fascista (…) Salazar era criticado por nunca ter vestido uma farda e só timidamente fazer uma ou outra vez a saudação fascista».

Muito mais curioso é perceber como ambos viveram, em posições absolutamente antagónicas, o grande acontecimento desse ano de 1936: o início, em Julho, da Guerra Civil de Espanha.

Escreve NTP: «Apaixonei-me, acompanhando meu Pai, pela causa nacionalista. Ouvíamos sofregamente todas as noites o noticiário do Rádio Clube Português, dirigido pelo major Botelho Moniz (…). Amante da geografia, arranjei rapidamente um mapa da Península, onde ia registando os avanços das colunas franquistas em direcção a Madrid».

Escreve EP, então preso em Peniche: «Vivemos o primeiro mês da guerra civil sob uma enorme tensão. (…) Acabámos por dispor de um rádio rudimentar que nós próprios construímos (…) que nos permitia, com alguma dificuldade, ouvir as emissões do Rádio Clube Português. (…) Arranjámos rapidamente um mapa onde assinalávamos as posições dos dois lados. (…) Saltava à vista que a área controlada pelas forças da República era muito maior do que aquelas que os fascistas detinham».

Riem-se ambos quando lhes leio estes textos. Quase nem querem acreditar e repetem, várias vezes: «É curioso, muito curioso!»

EP faz notar que teria certamente combatido em Espanha se não tivesse sido preso pouco antes da data em que deveria partir para a União Soviética, para uma estadia planeada pelo PCP. Como tantos outros, teria vindo combater ao lado dos republicanos, «onde se julgava estar a decidir-se o percurso e o destino da revolução mundial».

Em Lisboa, NTP envolveu-se na organização de uma grande coluna de camiões que levou até Sevilha mantimentos para as tropas franquistas.

Estranhos paralelismos, revisitados tantas décadas mais tarde. De duas pessoas que, desde ontem, estão ambas na casa dos 90.

(A partir daqui. Continuação da conversa aqui e aqui.)
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