No passado dia 2, divulguei um primeiro texto de Manuel Loff. Fica aqui o segundo (Público de hoje, sem link). Leitura mandatória.
O Expresso decidiu oferecer gratuitamente aos seus leitores a História de Portugal em 9 fascículos, coordenada por Rui Ramos (RR). Nela, apresenta-se-nos uma ficção sinistra e intelectualmente cínica sobre a ditadura salazarista, procurando aquilo que, até hoje, ninguém na historiografia séria e metodologicamente merecedora do nome tinha tentado: desmontar a natureza ditatorial do Estado Novo. Como comecei a expor aqui há duas semanas atrás, é inaceitável que se pretenda consagrar uma leitura tão manipulada da História.
Para RR, o salazarismo era “uma espécie de uma monarquia constitucional, em que o lugar do rei era ocupado por um Presidente da República eleito por sufrágio direto e individual” (pp. 632-33), que “reconhec[ia] uma pluralidade de corpos sociais (...) com esferas de ação próprias e hierarquias e procedimentos específico”, mas que só “não admitiu o pluralismo partidário” (p. 650). Nada se diz sobre o papel das eleições como simulacro de legitimação popular ou a fraude generalizada, realizada mesmo quando nenhuma candidatura alternativa se atrevia perante a do partido único, para inflacionar artificialmente a votação e simular um consenso que não existia.
É inacreditável ver produtos típicos da fascização da sociedade, importados diretamente do fascismo mussoliniano, como foram os sindicatos nacionais, as casas do povo (verdadeiras “associações de socorro e previdência” que “desenvolviam atividades desportivas e culturais”) e os grémios corporativos, descritos como meras “associações” de “representação da população ativa” (p. 644), sem se escrever uma linha sobre a guerra total aberta aos sindicatos livres do período liberal, feita de prisões, deportações e mortes.
Para RR, a repressão, definidora de qualquer ditadura, “tem de ser colocada no contexto do uso da violência na manutenção da “ordem pública””. Sem citar documentos, Ramos faz aquilo que ele próprio diz que “os salazaristas fizeram sempre questão” de fazer: “Comparar os métodos repressivos [de Salazar] com a ‘ditadura da rua’ do PRP” (p. 652), sustentada sobre o “trabalho sujo” de “gangues chefiados por ‘revolucionários profissionais’” (p. 591), empurrando o leitor a achar que a I República fora muito mais violenta que a ditadura. Esta teria sido tão generosa que muitos “conspiradores e ativistas conservaram as suas posições no Estado em troca de simples abstenção política”; contrariando quase tudo quanto se escreveu na História social e da educação do salazarismo, diz-se que “não houve saneamentos gerais de funcionários” (p. 653)! Pior terá sido a Revolução de 1974-75, em que “20 mil pessoas [se] viram afastadas dos empregos” e “pelo menos 1000 presos políticos” terão sido detidos, “7 vezes mais do que no fim do Estado Novo” (p. 732)...
Espantados? Para RR, o salazarismo, afinal, “não destoava num mundo em que a democracia, o Estado de Direito e a rotação regular de partidos no poder estavam longe de ser a norma na vida política”. A democracia não existia nem na “Europa ocupada [sic] pela União Soviética”, nos “novos Estados da África e da Ásia” ou “mesmo na Europa democrática”, que “produziu monopólios de um partido (...), sistemas de poder pessoal (...), restrições e perversões” como “a proibi[ção] de partidos comunistas” ou “tortura e execuções sumárias” (p. 669). Em 1968, substituído Salazar por Marcelo, “a democratização não estava na ordem do dia” no mundo. Os “constrangimentos policiais”, justificados “no resto do Ocidente” pela “‘luta armada’ da extrema-esquerda” (pp. 697-98) que se inicia no final dos anos 60, eram semelhantes aos do Estado Novo. Eis aquilo que me parece puro cinismo: a democracia, afinal, não existia em lugar nenhum, o que esbate qualquer diferença entre ditaduras e sistemas liberal-democráticos, onde a violência do Estado e de classe coexiste com um mínimo de liberdade de ação para partidos e movimentos que contestem o Estado e os ricos.
Da violência colonial, dos massacres perpetrados contra africanos, nem uma palavra! E a guerra? “A opção [de recusa de sair das colónias] não pareceu inicialmente excêntrica na Europa” porque “a retirada europeia de África só começou em 1960”, omitindo que ela começara dez anos antes. Se a guerra colonial (nunca assim designada, claro) “foi o maior esforço militar de um país ocidental desde 1945” (p. 680), as “guerrilhas” tiveram “reduzido impacto”, a guerra “não foi demasiado cara” e era “pouco mortífera”, e, “talvez por isso, o recrutamento nunca foi um problema” (pp. 684-85), o que é talvez o erro factual mais despudorado de todos quantos RR comete! Em resumo, “a guerra foi aceite” (p. 685) pelos portugueses.
Dedução lógica: o que nos habituámos a chamar uma ditadura não era mais do que um regime semelhante aos que por lá fora havia, melhor até, no campo da repressão, do que muitos, a começar pela I República e o 25 de Abril! Em tempos de transição do Estado Social para o Estado Penal, como designa o sociólogo Loïc Wacquant à criminalização dos dominados que se opera nos nossos dias, o salazarismo voltaria a ser um regime para o nosso tempo!
23 comments:
Estas coisas do tempo do Dom V filho do Dom IV e pai do Dom VI, vão massacrar o tutano daqueles que se vão formar só ao fim de 5 anos porque vão ser repetentes na 4ª classe.
Isto é perigoso. Esta leitura para aquelas pessoas que não têm ideologia, não têm princípios e se regem apenas pelo capital, ou seja, grande parte da população, ao ler isto podem sentir curiosidade em pesquisar mais sobre os ditos partidos da direita e onde o ódio para com os outros é sempre tão sobressaído, o ódio individual traduz-se na aceitação dos problemas que estes defendem. Ou seja, a culpa é dos imigrantes!
E se isto for aceite pela população imaginem o perigo que poderá causar. Infelizmente temos uma grande percentagem da população que não tem sentido critico e que irá aceitar isto e irá basear-se nisto... Lamentável!
E enquanto escrevo isto, não olhei uma única vez para trás para ver se estava a ser vigiado, liberdade sempre...!!!
Saído do poste anterior, ocorre-me dizer que o "estoriador" RR se assemelha a um "Delfim" do Hermano Saraiva, menos histriónico, mas muito mais torvo.
Isto agonia-me.
Tanto que se sofreu, morreu, exilou, destroçou e agora vem um inteligente qualquer dizer à tourada que a vaca é sagrada e a nossa vida nunca existiu.
Com tal discurso, nos idos fascistas o que rui estaria, pelo menos, a dirigir alguma daquelas corporação históricas tão isentas e «independentes» quanto ele.
Um dia estes inteligentes vão deixar de ser para-raios e aí, vai cumprir-se a natureza do raio.
O pior é até lá.
Preocupante, de facto! Ou-Vi o Pacheco Pereira a fazer um rasgado elegio a esses fascículos, mas não me apeteceu ir à procura deles para os ter à mão. Com este contraditório, estou esclarecida. Fico é preocupada, pois pensava - erradamente, está visto - que a fase do branqueamento do salazarismo e seus contornos já estava ultrapassada. Afinal, enganei-me: os tempos são facilitadores destes discursos lixivianos, pois a cultura dita geral é o que se sabe...Textos para grande público (=povo?) desta natureza ajudam a manter a serenidade necessária à podre democracia...
Ia agora mesmo a "postar" este artigo do Loff quando, num passeio pelo Face, vi que já o tinhas colocado no teu "«dazibao»".
Curioso é que em "oposição" (isto é, nas costas da mesma folha do Público) temos outro historiador (no caso historiadora) a Fátima Bonifácio "anti-revolucionária": "o total descrédito dos métodos revolucionários como meio para impulsionar o progresso..." e lá vai explicando que tendo em conta "a natureza humana" não há nada, ou há pouco! a fazer ou a mudar.
Em que parte do mundo te encontras?
Não estivéssemos na «silly season» e talvez tivesse pegado no artigo da F.B. Ou não: alguém para quem o mundo acabará feliz quando todos tiverem iPad e similares não merece o esforço.
Só me apetecia agarrar nela e metê-la à força num avião para a Geórgia e Arménia, (de onde vim agora). Talvez percebesse umas coisas – mas isso seria tema para uma longa conversa...
Pois eu continuo a afirmar que estes RR e quejandos, tipo F. Bonifácio,tem de se lhes partir o foçinho...simples.
Não me venham com merdas de democracia,blá,blá, etc. Estou fartinho destes pulhas que tudo dominam,principalmente nos MÉRDIA!
Daqui a pouco estão a escrever que não houve mortos,que o Tarrafal era um SPA,etc.Desculpem lá, mas quando se atinge certas marcas,não há palavras e converseta para ninguêm....bordoada nos cornos e mais nada.Não resolve, mas ALIVIA!!!
Olha "O Duque", no outro dia, meteu-se dentro do carrito, a correr, que se ia c....do todo, foi por pouco...
http://alma_lusiada.blogspot.pt/2007/05/continuando-com-antnio-jos-saraiva.html
1- o focinho não tem cedilha e a violência física surge frequentemente associada com a passividade mental...
2- Deixo aos aventais e Loffs deste país (se quiserem) carregadinhos daquela arrogância cheia de superioridade moral a ligação para o artigo de António José Saraiva sobre o salazarismo para me dizerem (se acharem por bem) se também é cínico e sinistro...
A maior parte dos comentários são de uma anormalidade confrangedora. Concordando mais ou menos com Manuel Loff registo a oportunidade sempre positiva de se produzir crítica no campo da historiografia, tantas vezes remetida a um silêncio negativo. Será assim tão difícil para quem escreve estes comentários disparatados perceber que não é de conversa de café que os textos de Loff se referem. Pedro Barros
Aos "anónimos", é assim que se escreve não é?Pois a esses seres cobardolas,só existe uma frase,nela não existe cedilha,e revela bastante atividade mental e fisica:vá á merda, e fique lá com o seu Saraiva,que é um rapazola muito jeitoso, ok?
Que o Ramos diga o que sabe e o Loff o que julga saber, para mim, é óptimo. Que as pessoas confrontem ideias e valores na base do respeito mútuo sem que sejam ameaçados pelas formigas brancas de todos os tempos, para mim, digo-vos, é óptimo. Aquilo que me faz uma pena profunda é a esquerda contentinha, auto-satisfeita, pouco curiosa e a debitar tantas vezes as maiores enormidades porque preguiçosa e que se contenta com o regurgitado. Rui Ramos tem, pelo menos, o mérito de apresentar uma visão que revela muito e muito trabalho.
O que eu gostaria dos que se dizem "não alinhados", "alternativos" é que não colocassem o manto do silêncio a quem afirma:
"O Estado Novo, corporativo, é o Estado maçónico no seu auge. Todos os presidentes da República, todos os presidentes da Assembleia Nacional, todos os comandantes militares, todos os procuradores-gerais da República, todos os presidentes do Supremo Tribunal de Justiça, todos os presidentes do Supremo Tribunal Administrativos, todos os presidentes do Tribunal da Relação, todos os governadores civis, todos os directores das polícias, todos os directores da RTP eram maçons. A História não regista a prisão de nenhum opositor do Estado Novo por ser maçon. Claro que havia opositores de Salazar que eram maçons, sendo o mais conhecido o General Humberto Delgado. Mas isso não tem nada de extraordinário, pois dentro das lojas maçónicas não há sempre unanimidade.
Sobre isto, moita, carrasco! Valente a esquerda de onde venho e fui criado!...
Entretanto o perigoso reaccionário José Mattoso disse de sua justiça: http://ipsilon.publico.pt/livros/critica.aspx?id=252385
"
Sobre isto, moita, carrasco! Valente a esquerda de onde venho e fui criado!..."
Pois claro "anónimo",como é que ninguêm aqui advinhou que é daqueles ressábiados,exqualquercoisa,etc.Ora mais um que fumava três maços por dia,e agora é...
Já agora, é curioso, o "anónimo","sabe" que, o Ramos percebe da poda, porque o Ramos "trabalhou muito"e o Loft nem por isso,esse não, esse "julga saber". Porquê? Então não está na cara? O Loft é um "arrogante",não é?Estão a vêr?
Ai o horror que eu tenho das formigas brancas,desgraçadas que se metem em todos os buracos...
Sr. Luis Reis, a esquerda de onde venho e onde fui criado ensinou-me a estar e atento e a lutar sobretudo contra a ignorância, o fanatismo e a tirania, cubra-se esta com as capas que queira. O fanatismo é fruto do medo e da ignorância e produz toda a gama de gente que apoia e fomenta os tiranos. Não é por alguém pensar de maneira diferente da minha que venho para os blogues dizer que se deve partir o focinho a este ou aquele. As ideias combatem-se com ideias, mas, compreenderá, para tal é preciso tê-las, caso contrário a chapada chega. Saiba também que há uma diferença entre os actos e as palavras e a esquerda de onde venho ensinou-me que muitos fascistas se acobertam com palavreado de esquerda, mas a conversa agora podia ser longa e desejo-lhe apenas boa-noite.
As ideias combatem-se com ideias peramte aqueles que não tem medo e que se protegem sobre a capa merdosa do anonimato.
Já agora,com certa gente, que brinca com as palavras, e julga ser bem falante, pretendendo desviar o olhar dos outros,sobre o que foi o Salazarismo, não há palavras....só mesmo no focinho.Passe bem "anónimo"..
Republicar o exercício intelectualmente desonesto de um indivíduo como Loff parecia bonito há 7 dias atrás. Mas agora, uma semana depois, só deixa ficar mal quem o republicou, depois de ser conhecido o direito de resposta exercido pelo visado por Loff e confirmada a falsificação das afirmações de Rui Ramos...
Sonia Ferreira, quem republicou o quê? É favor ver a data da publicação deste «post».
Sim Joana, 16 de Agosto, com o 2.º artigo do Público, na sequência do 1.º post de 2 de Agosto, com o 1.º artigo. E então...???
Sónia,
Não entendo: ambos os artigos foram postos aqui no dia em que foram publicados no Público. Que tem isso a ver com «republicações» ou com a data do texto de RR, no mesmo Público, que é posterior?
Além disso: eu não sou obrigada ou impedida de divulgar o que quer que seja. Tal como os outros bloggers que publicaram o que o RR escreveu, no mais legítimo dos seus direitos (e não puserma os de ML...)
Joana: não percebeu. O problema não é a data, bem sei que a publicação dos posts corresponde à data dos artigos. Caso não tenha ficado claro, o problema é o conteúdo do que (re)publicou. E o que republicou foi um texto que consiste na (alegada por Loff) «reprodução» de citações que são simplesmente falsas e que têm como resultado um dos textos mais desonestos que alguma vez li (e que conste: não tenho nada contra a orientação ideológica do próprio Loff nem nada a favor de Salazar; só tenho algo - e muito - contra a desonestidade intelectual e algo - e muito - a favor do rigor em trabalhos académicos ou de investigação).
Normalmente, o hábito de Loff era citar frases que o alvo da sua crítica havia realmente afirmado, mas retirando-as do contexto. O que conseguiu fazer aqui foi diferente: foi publicar frases que o visado nem sequer proferiu.
Se desejar consultar um exemplo de um exercício anterior que já havia demonstrado em 2006 o alcance da desonestidade (atrever-me-ia a dizer em bom português: da canalhice) de Loff, recomendo-lhe o link http://malomil.blogspot.pt/2012/08/quando-os-lobos-uivam.html, que lhe apresenta um exemplo de ataque pessoal que oscila entre o trágico e o cómico (faria rir o leitor, não fosse ser tão sério e imoral).
Cada blogue tem a liberdade de publicar o que entender, nisso a Joana tem razão. Mas, caso tal blogue tenha a pretensão de ajudar minimamente os seus leitores a conhecerem a verdade, convém avisá-los, uma vez apresentado um qualquer artigo, sempre que fica demonstrada (ou, se preferir, pelo menos, suscitada ou sugerida) a falsidade dos elementos nele contidos (sim:não apenas descontextualizações, mas puras e simples falsidades), como fez o visado Rui Ramos, num esclarecimento que, como seria de esperar, Loff não mais conseguiu replicar, porque seria impossível fazê-lo sem ficar ainda mais em evidência. Convido, portanto, este blogue a colocar aqui a resposta de Ramos - bem sei que ela já foi muito divulgada, mas só ficaria bem se o fizesse - e, por sua vez, a convidar os leitores a compararem o que Loff disse que Ramos escreveu com o que Ramos realmente escreveu. Não custa assim tanto. Embora, reconheço, ainda custe menos criticar uma obra que se não leu.
Sónia,
Publiquei isto agora.
Joana, agradeço-lhe por isso. Com esse gesto, nada mais tenho a apontar: agora cabe aos leitores - pelo menos os intelectualmente honestos - comparar um texto com o outro, tendo por referência precisamente as próprias páginas da obra de Rui Ramos que Loff indica nos seus artigos.
Cumprimentos
Sónia
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