Fica aqui, na íntegra, a que Januário Torgal Ferreira fez no funeral de Manuel António Pina.
«Para a Maria de Fátima, filhas e restante família; para a cultura poética e teatral, e suas crianças destinatárias; para o jornalismo em Portugal, mormente para o "Jornal de Notícias"; para a cidade do Porto e para a cidadania em geral, fica um vazio sentido de um homem reto, culto, corajoso, solidário e inteligente.
Há anos, o Manuel António Pina salientava (suponho com os olhos e o ouvido aberto a Beethoven, autor do dito) que a bondade - supremo grau da sabedoria e do serviço à humanidade - era o valor mais insigne.
Desse e da miríade de tantos outros valores que entretecem o tecido social foi o Manuel António articulador e sábio, poeta e peregrino, num misto de sonho, bom humor, modéstia natural, profecia e inconformismo.
Na penúria desta sociedade onde se vem a perder a liberdade da honra, a fruição dos humildes e oprimidos, sob o guia de um coração de pedra diante dos desafortunados, dos sem emprego e futuro, a cultura é luxo de utilitarismo; as instâncias de desenvolvimento, a estultícia do permanente lucro; os lutadores com o seu suor e dignidade da carteira profissional, muitas vezes, um estorvo, parecendo contabilizar-se em número, a ternura e o afecto, a fraternidade e a paz, as relações sociais, alumiadas pela justiça e respeito.
Até o próprio patriotismo ganha parecenças com a glorificação pessoal, ele que traduz o apagamento do eu diante do primado do outro.
Escultor de palavras/conceitos, com cinzel apurado, o Manuel António sempre nos entrou casa adentro com o rumorejar da fome, as cumplicidades da rua, as traições de promessas, o desembarque de interesses.
Heidegger perguntava pela função dos poetas em tempos de desqualificação! Foi em capítulo desta história que um poeta grande nos deixou.
Escolhi, face a tantas hesitações e desequilíbrios, a "Boa Nova das Bem-Aventuranças", das quais destaco, em comentário, o verdadeiro modelo do crescimento:
Felizes os que deram tudo
Felizes os buscadores da paz
Felizes os que não fugiram, quando perseguidos e injustiçados
Felizes os que plantaram sempre o pão da justiça e lutaram contra a germinação da miséria
Felizes os que acreditaram que só se tem Deus quando se humaniza a comunidade humana
Felizes os que humanizam o mundo com a consciência de sem razões religiosas
A todos estes, Deus há-de escolhê-los como peregrinos de Emaús.
Em artigo na "Notícias Magazine", intitulado "O que fica do que se perde", escrevia há uns meses o Manel: "Hoje (...) experimento sempre uma confusa sensação de perda (referia-se à fé católica e às ideologias) (...).
Talvez não seja bem melancolia, mas antes a longínqua persistência de algo, uma espécie de resíduo ou de subproduto em qualquer sítio onde nem a razão nem a vontade podem alcançar.
E, conforme assinalava poeticamente:
"Ainda não é o fim... apenas um pouco tarde"
Mesmo "com palavras últimas".
"Volto de noite para casa
Tudo é memória fora de mim".
"Por outras palavras, o encontro da morte com o silêncio" não é o contrário da existência "pois a vida talvez seja um sonho".
Se, numa perspectiva cristã, é no coração de Deus que permanece conseguida a realização do que fomos, pensámos e vivemos, é no coração de cada um de nós que o Manuel António repousa, enquanto amigo de combates desiguais sem deixar a nossa casa, porque o que defende a grande causa da humanidade é uma existência justa.
Pela saudade "é que vamos".»
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1 comments:
Olha agora é que me apanhou,....lá molhei a merda do teclado.Obrigadinho, tá?
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