Do texto de Sandra Monteiro em Le Monde Diplomatique (ed. portuguesa) deste mês.
«Multiplicam-se os discursos do governo e de Belém sobre a chegada do tempo do investimento, do crescimento, de super-créditos fiscais e da preparação do pós-Troika. Mas nem os que apostam nesta retórica conseguem disfarçar o quanto ela está desligada da realidade e se destina apenas a manipular percepções e a prosseguir um plano que a maioria dos portugueses contesta. Na vida real, o que se impõe é a crescente dificuldade de sobreviver, de pagar as contas, de ter esperança de ver chegar um novo governo que corte verdadeiramente com as políticas de austeridade e afaste os seus protagonistas.
O novo plano de cortes na despesa pública que o Orçamento Rectificativo para 2013 traduz não podia ser mais claro na separação entre a ficção anestesiante dos discursos e a realidade angustiante das práticas governativas. Depois de dois anos sob dependência do empréstimo da Troika – Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Central Europeu e Comissão Europeia – e de políticas de empobrecimento em benefício do sistema financeiro e dos grandes interesses privados, todos os indicadores mostram que, para a maioria, tudo está a piorar de forma acelerada: o desemprego atingiu já os 17,7% e continuará a subir; o défice no primeiro trimestre atingiu os 8%, tornando pouco credíveis as metas estabelecidas pelo governo para 2013; no mesmo trimestre, a recessão chegou já aos 4%; e a dívida pública em 2014 deverá superar 132% do produto interno bruto (PIB), bem acima dos valores que o próprio FMI considera economicamente sustentáveis ou reembolsáveis. (...)
Ainda assim, com uma população exaurida, o executivo de Pedro Passos Coelho aproveita para impor ao país sucessivos cortes austeritários, através de mais uma brutal redução da despesa pública. A engenharia social em curso mantém os seus traços identitários: reduzir o rendimento disponível das famílias, degradar as condições de trabalho, aumentar a pobreza e a exploração, tornar a precariedade e o desemprego fenómenos estruturais, degradar os serviços públicos e as funções sociais do Estado para desenvolver negócios privados e transformar em profecia auto-realizada o sonho neoliberal do Estado como ineficiente e incapaz de satisfazer as necessidades dos cidadãos que o pagam. Esta transferência maciça de recursos é bem ilustrada pela comparação dos anunciados cortes de 4 mil milhões de euros no Estado social com as perdas infligidas às empresas públicas com os ruinosos contratos financeiros derivados SWAP, que já ultrapassam os 3 mil milhões de euros.
Este orçamento rectificativo – quantos mais haverá este ano? – não traz novidade quanto ao projecto ideológico que o sustenta, mas ameaça ser responsável por duas alterações qualitativas que podem ter efeitos cumulativos destruidores da sociedade e da economia portuguesas. Em primeiro lugar, porque os cortes na despesa pública têm efeitos ainda mais recessivos, por acelerarem a diminuição da procura interna, os despedimentos e as falências, a quebra de receitas fiscais e da Segurança Social, o aumento das despesas com prestações sociais, etc. Em segundo lugar, porque a mais recente redução das despesas está quase toda concentrada em três áreas: despedimentos na função pública, diminuições das pensões de reforma e cortes nos subsistemas de saúde e educação. (...)
Antes que a sociedade se convença de que o «Estado democrático» é dispensável, que só tira e não dá nada em troca, é altura de pensarmos que a austeridade não é um mero somatório de medidas avulsas; ela actua sobre este ecossistema que nos liga a todos e está a destruir toda a sociedade. Até ao dia em que surgirem medidas que façam os ricos perder o sono, a nossa pergunta perante cada escalada austeritária tem de deixar de ser «isto afecta-me?» e passar a ser «o que fazer para isto não nos afectar?». Dia 27 de Junho há Greve Geral.»
Na íntegra AQUI.
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