António Guerreiro publica, no Ípsilon de ontem, mais um excelente texto: «Pensadores e filósofos» – uma óptima leitura para uma manhã de Sábado (os realces são meus).
«Dizia-se em tempos — agora já se diz menos, porque a “despoetização” chegou a todo o lado — que Portugal é um país de poetas. Aquilo que nunca se diz é que também é um país de “pensadores”. Não de filósofos, já que nesse domínio a tradição não é muito rica, mas de “pensadores”. As aspas significam que a palavra é aqui declinada como citação: é o nome dado a uma categoria que não existe com o mesmo sentido noutras latitudes culturais e para a qual se vão encontrando representantes, por aqui, de tempos a tempos. Por exemplo, um sociólogo como António Barreto, a partir do momento em que começou a ter um discurso que já não é limitado pelas regras, pela ordem e pelo método de um determinado campo disciplinar, começou a ser chamado “pensador” (sem fazer nenhuma pesquisa, já dei por duas ocorrências) e, mais importante do que a explícita nomeação, a ser tratado como tal (pelo menos, na televisão). Não se trata da categoria dos “pensadores privados”, que fazem da sua obra um caso de obstinação pessoal, à margem de cargos académicos e institucionais. E também não são filósofos porque a forma de pensamento que praticam não é filosofia, é antes uma indefinida disciplina de sapiência que tem muito de oracular. O “pensador” português adquire quase automaticamente esse estatuto se eleger a nação portuguesa (e a respectiva sociedade, de preferência numa perspectiva trans-histórica) como objecto. Por isso, aliás, é que a chamada “filosofia portuguesa” é campo fértil de onde brotaram e continuam a brotar “pensadores” e um vasto “pensamento”. Veja-se o que aconteceu a Eduardo Lourenço: como passou com armas e bagagem da filosofia para a literatura e como se pôs a “pensar Portugal” (como se ouve dizer tantas vezes), acabou por se tornar o nosso “pensador” por antonomásia, malgré lui, que merece muito mais do que esse epíteto e os equívocos e reverências que ele suscita. O seu grande pecado, como sabemos, foi ter dado a um dos seus livros mais célebres o título O Labirinto da Saudade e, pior ainda, o subtítulo Psicanálise Mítica do Destino Português, que foi lido como se não houvesse nele nenhuma ironia nem um segundo grau e fosse completamente permeável ao “irrealismo histórico” e à ideologia que pretende precisamente analisar. Na história dos nossos “pensadores”, há que distinguir duas espécies: os que nem mereciam ser, mas por razões culturais (ou por alguma falta de prudência) aconteceu-lhes essa desgraça; e os que trabalharam para o ser, por convicção e porque esse “idioma” os formou. Estes “pensadores”, ao contrário dos filósofos, têm um pensamento completamente transitivo, exclusivamente orientado para um objecto exterior. Têm uma pretensão de verdade e de revelação, e isso verifica-se no “estilo” e nos protocolos discursivos. Tendem, por isso, a ser ouvidos como oráculos. A filosofia, pelo contrário, conhece desde sempre o modo como o pensamento implica a linguagem. Para o filósofo, ao contrário do que acontece com o nosso “pensador”, não há pensamento que não seja pensamento do pensamento, não há pensamento que não seja experiência da linguagem. » O “pensador” — a categoria portuguesa com este nome — está cheio de
visões do mundo, mas falta-lhe aquilo que desde sempre sobra no
filósofo: uma visão da linguagem, uma interrogação sobre o significado
das palavras. Daí a ilusão de transparência que transmite, que é uma
transparência ingénua, semelhante à dos poetas que têm muita coisa para
dizer e muitos sentimentos para exprimir. São, à sua maneira, realistas.»
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